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“Empresas sem responsabilidade ambiental e social não têm futuro”

Negra e nordestina, Jandaraci Araújo é conselheira emérita do Instituto Capitalismo Consciente e fala sobre o comportamento das empresas e abre sua trajetória de vendedora de salgadinhos à referência em negócios e diversidade

capitalismo consciente jandaraci araujo Jandaraci Araújo
por Redação agosto 4, 2023
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    Impacto positivo e legados sustentáveis

As empresas que não adotam um modelo de capitalismo responsável em termos de meio ambiente e impacto social não têm futuro. Essa é a opinião de Jandaraci Araújo, a Janda, Conselheira Emérita do Instituto Capitalismo Consciente Brasil. Para ela, a empresa que polui seu entorno poderá ser vítima de mudanças climáticas que vão afetá-la diretamente. E negligenciar o aspecto social da organização é afetar gente, é contribuir para prejudicar o consumo do que é produzido, rompendo uma cadeia de estrutura B2B2C (business to business to consumer). 

Este é apenas um dos cargos de Janda. Referência em inovação, novos negócios e destaque na área de diversidade, a profissional atua na Future Carbon S.A., uma climate change, e faz parte do Conselho do Instituto Inhotim e do Conselho da Kunumi, uma startup de Inteligência Artificial. Também é suplente no Conselho da Vale e conselheira fiscal da Vetor Brasil, uma ONG dedicada à formação de lideranças para o setor público. Janda é um nome muito respeitado no mundo dos negócios, onde também atua, muitas vezes, como palestrante.

Conselheira vendeu salgadinhos no início da carreira

Mas para alcançar tantas conquistas, Janda é dona de uma trajetória incomum, o que motivou o Seja Relevante a convidá-la a contar sua história. Preta, pobre, nordestina (Bahia) e adepta do candomblé, Janda enfrentou todo tipo de preconceito ao iniciar sua carreira. Nos anos 1990, já formada como tecnóloga em Informática, não conseguia achar uma vaga compatível com sua formação, o que atribui ao preconceito, especialmente racial. Partiu para vender salgadinhos nos trens do Rio de Janeiro, até que um professor, seu cliente à época, resolveu dar a ela uma oportunidade, abrindo uma vaga de estágio na antiga Sendas.

De lá para cá, foram muitos anos de dedicação e estudo. Janda, hoje com 50 anos, fez MBA executivo na Business School e na Fundação Dom Cabral (FDC). Também cursou MBA em Finanças, Auditoria e Controladoria na FGV e Inteligência Competitiva na ESPM. No momento, faz um pós-MBA voltado para governança corporativa na Universidade Saint Paul. Já lançou dois livros – “Mulheres nas Finanças” e “Mentores e suas Histórias”. 

Sua participação nos conselhos tem caráter técnico, mas a diversidade está sempre presente de forma transversal em sua atuação e abrange desde a questão de gênero e racial até o etarismo, religião, as PCDs (pessoas com deficiência), a xenofobia (neste caso, o preconceito com os estados fora do eixo das regiões Sul e Sudeste) e a questão LGBTQUIAP+. “São pessoas diversas e merecem seu espaço”, diz Janda.

Janda também é co-fundadora voluntária do programa Conselheiras 101, que visa a inclusão de mais mulheres negras e indígenas em Conselhos de Administração, por meio de cursos e outras iniciativas. Confira, a seguir, os detalhes da entrevista.

Você teve um início de carreira desafiador, vendendo salgados em trens no Rio de Janeiro, e hoje trabalha com grandes empresas, lidera iniciativas potentes e é um dos grandes nomes no mundo dos negócios. Como foi esse ponto de virada?

Duas coisas foram fundamentais na minha transformação e oportunidade de carreira. A primeira delas foi educação. Estamos falando dos anos 1990. Não é que eu vendia salgados porque não tinha nenhuma formação. Eu tinha! Estudei no Cefet da Bahia, uma escola federal, eu tinha curso de Informática, era tecnóloga. Mas a questão racial, mais que de gênero, sempre impediu as oportunidades. As portas não se abriam. Então quando eu distribuía CVs e ia em busca de trabalho, queriam me colocar numa função que não tinha nada a ver com minha formação. Todas as profissões são importantes, mas é muito frustrante você passar anos estudando e as pessoas querendo te dar emprego na área de serviço. Então, pensei, se é pra trabalhar com serviços, eu trabalho para mim, preferi vender salgados, que também é digno. 

Você acredita que a dificuldade de colocação era pela questão racial?

Sim, isso aparecia antes da questão de gênero. Ouvia perguntas como “esse diploma seu é verdadeiro”? “Tem alguém que possa comprovar que você estudou?” E tinha a questão do sotaque baiano. Nossa construção social é muito perversa. Há a questão racial, foram mais de 300 anos de escravidão. E ainda somos xenófobos. A gente só vê o nordestino na cozinha ou levantando paredes. 

Como vencer isso?

Para progredirmos, é uma questão de educação e oportunidade. No meu caso, um professor a quem eu vendia salgados na porta de uma universidade falou que ia me dar uma oportunidade. Ali começou a virada. Ele abriu uma vaga de estagiária na área de Marketing e eu já estava fazendo universidade em Administração com ênfase em Marketing. Eu vivia sem emprego e tinha duas filhas para criar. O estágio era no grupo Sendas, depois adquirido pelo Pão de Açúcar. Só há pouco tempo soube que ele criou essa vaga e ouviu comentários como “por que está contratando essa neguinha?”. O olhar desse homem para além da minha cor e do meu gênero fez toda diferença no que eu sou hoje.

Você acha que hoje as pessoas de baixa renda, negras, mulheres, podem contar com um suporte maior para que consigam iniciar uma carreira com menos dificuldade do que você teve?

Estamos distantes de um cenário ideal, longe de ter mulheres como eu em cargos de liderança. Mas, a política de cotas, de 2010, 2011 para cá, e as políticas de ações afirmativas em expansão, começaram um alinhamento com as multinacionais em torno de se ter diversidade, é um movimento crescente. As ações afirmativas fizeram com que o acesso aumentasse um pouco, mas ainda há muitas pessoas boas fora do mercado de trabalho. Seja por questão de gênero, cor, orientação sexual, de serem pessoas com deficiência. Há 30 anos, não se falava em diversidade como agora. Não era um assunto dentro do RH, então há uma melhora.

O que você diria a pessoas com origem e perfil semelhante ao seu e que estão em busca de oportunidade?

Que não desistam. As barreiras sempre existiram e já foram bem maiores. A gente não tinha oportunidade de falar, não tinha rede social, não tinha direitos. Então, continue investindo na sua educação. E se ninguém te der uma oportunidade, construa a sua, construa sua empresa, o que for. Não é uma corrida de 100 metros, é uma maratona. Pare para descansar, respire, mas não desista de você mesmo. 

Você atua em Conselhos e em várias frentes que são voltadas para o empreendedorismo,  empoderamento feminino, diversidade e liderança. Quais são suas bandeiras nestes Conselhos?

A minha atuação nos Conselhos é muito técnica. O conselheiro fiscal é um técnico, que olha a empresa como um todo. Quando estou na climate change, por exemplo, lidero o Comitê ESG. Então estamos atuando no Norte e Centro-Oeste e falamos de impacto sócio-ambiental, mudança climática, mercado de carbono, de comunidades ribeirinhas e quilombolas. Nas outras empresas, eu aporto minhas hard skills, questões técnicas, de mitigação de riscos etc, mas em todos os trabalhos trago o olhar da importância destas instituições se abrirem para a diversidade e inclusão. Sempre há oportunidade de discutir diversidade, porque todo mundo entendeu que isso é um valor.

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Foto: Reprodução/ Jandaraci Araújo via Instagram

Mas, aí sim falando em bandeiras, a Jandaraci tem uma outra iniciativa, como voluntária, sou co-fundadora de um programa junto com outras mulheres, que se chama Conselheiras 101, o qual visa a inclusão de mais mulheres negras e indígenas em Conselhos de Administração. Não acredito que eu deva ter uma história única, então ajudamos a criar um programa que possa trazer mais mulheres como eu para Conselhos de Administração. São cursos a partir de várias parcerias que abrem espaço para essas mulheres, como dentro do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC). 

O que é discutido nos Conselhos em termos de diversidade?

Foto: Christina, wocintechchat/ Unsplash

Nas minhas hard skills, trago muito meu olhar voltado para inovação e novos negócios. Mas transversalmente, trago o raciocínio de que as empresas precisam estar mais abertas às pessoas. Inclusive, isso está ligado à mitigação de riscos. Porque, hoje, ter clareza sobre políticas de diversidade e inclusão, política de relacionamento com empregados e com a comunidade, está atrelado à gestão de riscos. Não é apenas uma causa ativista. Saímos do ativismo para uma questão técnica de gerenciamento de riscos: como a empresa vai se posicionar, qual impacto vai posicionar na sociedade, a questão do trabalho escravo. 

O papel do conselheiro não é executar, mas, sim, trazer reflexões para os executivos. Na questão de gênero, por exemplo, é de se questionar por que não há uma mulher na liderança, por exemplo, ou o fato de 90% do quadro ser masculino. Então, questionamos os executivos. Alertamos. Uma empresa com mais de mil empregados que não tem uma mulher na liderança em 2023? Ou a empresa vai preferir pagar multa por que não respeita a lei de PCD? Tudo isso são riscos. Estamos falando de reputação. Quanto vale a reputação? 

Outro aspecto é que não é bom ter uma uniformidade de pensamentos, de crenças, dentro de uma organização. Inovar requer quebra de paradigmas, disrupção. Se todo mundo pensa igualzinho, veio das mesmas escolas, têm o mesmo background na liderança, quem vai ser o ponto de disrupção que vai provocar o próximo passo?

Você se posiciona como uma mulher preta, mãe, adepta do candomblé, de origem baiana e pobre e que hoje frequenta Conselhos de grandes empresas. Com que frequência você vê pessoas com background semelhante ao seu nesses espaços? 

Não vejo pessoas assim. Existe muito preconceito, né? As pessoas toleram mais não ter religião do que ter uma religião africana, por exemplo. E isso é tão individual. É uma forma de se conectar com o divino, religião é isso. Encontrar pessoas com essa minha complexidade, de uma forma geral, eu não vejo. Mas, ser assim como sou não é simples, tem ônus e bônus. Não sou chamada para algumas situações, por exemplo. Não é todo mundo que se expõe. Mas eu entendo que a minha potência está em ser exatamente o que eu sou.

Você fala muito sobre o nível de consciência das empresas. Como é o trabalho do movimento Capitalismo Consciente? Você acha que este é o caminho para o capitalismo dar certo?

O capitalismo consciente é uma terceira via. Não é o lucro pelo lucro. É o lucro gerando impacto na sociedade. Ele tem alguns pilares: liderança consciente e propósito. Uma empresa não pode existir só para dar lucro a seus acionistas. Ela tem que se relacionar com a comunidade. Precisa de uma liderança que pense muito mais no coletivo do que no individual. É um capitalismo não predatório. Porque, afinal de contas, a gente precisa das pessoas e desse planeta para consumir. 

A nossa Lei das S.A., de 1976, já falava da responsabilidade social das empresas. A empresa, quer queira quer não, tem um impacto social. Ela gera renda, ela impacta na comunidade onde está inserida positiva ou negativamente. Para que uma empresa existe? Só pra dar lucro para os acionistas e donos? Ela tem que existir para além disso, para ela conseguir se perpetuar, para ser uma empresa de 100, 200 anos. Você só vai conseguir se perpetuar, se entender esses novos mecanismos.

Mas em que premissas se baseiam as empresas de capitalismo consciente?

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© – Shutterstock

Nas premissas de impacto social, responsabilidade ambiental, sustentabilidade, por exemplo, é estar muito próximo dos conceitos de ESG. Se a empresa desrespeita o meio ambiente, não vai dar para ela continuar mais ali. E aí a liderança consciente tem um papel fundamental. São os líderes que precisam entender o papel da empresa na comunidade e na sociedade. É, por exemplo, o combate à corrupção. As empresas têm que ter políticas anticorrupção muito claras. E políticas não discriminatórias precisam ser um valor da empresa. 

Então, a empresa que não seguir esses conceitos não tem futuro?

Sim, ela não tem futuro. Vai ter vida curta. Ela precisa entender, em algum momento, que sua atuação gera impacto social. Quando ela tem 200 funcionários e demite 100, ela está impactando no mínimo 300 vidas. Uma planta corporativa impacta toda a comunidade. A liderança consciente tem que trazer para empresa esse olhar 360º. O futuro da empresa não consciente está comprometido, porque não há futuro sem gente, não há futuro sem meio ambiente. Quando a gente pensa em meio ambiente, vai do extremo calor às enchentes. Se a empresa só polui, não se preocupa com o impacto e em diminuir a pegada de carbono, está gerando impacto para ela mesma. O custo de energia vai ficar mais alto, os recursos ficam mais caros, precisa ter plano de contingência com mais frequência para combater, por exemplo, uma enchente. Quando olhamos o aspecto social, na ponta do processo estamos lidando com gente. Não existem negócios B2B (business to business), são todos B2B2C (business to business to consumer). Na ponta, é gente. Então é preciso entender o impacto que cada um está gerando. Que futuro a organização tem se ela não olha para meio ambiente e sociedade? O modelo de negócios de uma organização pode deixar de existir em alguns anos, simplesmente porque não houve atenção a uma mudança climática significativa. Então, há a necessidade de olhar para o todo desde o início do processo.




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