close

Projeto para pessoas em situação de rua aplica estratégia aberta em BH

Projeto Canto da Rua aplica a estratégia aberta para agregar experiências, com gestão e governança

Foto: Divulgação
por Redação agosto 30, 2023
  • Estratégia e governança Mais informações
    Estratégia e governança
  • Impacto positivo e legados sustentáveis Mais informações
    Impacto positivo e legados sustentáveis
  • Gestão pública Mais informações
    Gestão pública

O projeto Canto da Rua nasceu na capital mineira em plena pandemia de Covid-19, quando várias portas se fecharam para a população em situação de rua. A iniciativa, coordenada pela Pastoral de Rua, da arquidiocese de Belo Horizonte (MG), tem a participação de várias instituições, inclusive da Fundação Dom Cabral (FDC).

A professora Maria Elisa Brandão, professora associada da Fundação Dom Cabral na área de estratégia, é uma das pesquisadoras que atua na prática no Canto da Rua e conta como o conhecimento – nesse caso – é uma estrada de mão dupla. Envolvida em orientar para a construção coletiva de um plano estratégico para o Canto da Rua, a Fundação também ajuda a criar as bases para a gestão e para a governança da iniciativa. Acompanhe.

O que é o projeto Canto da Rua?

É uma iniciativa da Pastoral de Rua, da arquidiocese de Belo Horizonte, coordenada pela Irmã Cristina Bove, que começou como serviço emergencial durante a pandemia. O foco da Pastoral são as pessoas em situação de rua. E eles fazem muita questão desse nome, porque população em situação de rua não quer dizer, necessariamente, os sem casa. Ela envolve aqueles que eventualmente estão numa situação de rua, mas que podem ter, por exemplo, uma casa muito distante, passando o dia na rua.

E também não é gente sem trabalho, porque as estatísticas mostram que há pessoas sem casa, mas que têm um emprego e cuja remuneração não é suficiente para o sustento delas. Há ainda um terceiro exemplo, o da população indígena, que tem outro tipo de demanda. Então, são várias situações, com diversas complexidades, de pessoas que passam o dia ou a noite na rua. A Pastoral já cuidava disso, mas durante a pandemia o problema ficou ainda mais grave.

Logisticamente, como o Canto da Rua foi organizado?

Antes da pandemia existiam centros de acolhimento da população em situação de rua, inclusive restaurantes populares à cargo da iniciativa pública. Com o lockdown, tudo foi fechado de uma hora para outra. Nesse momento, a Irmã Cristina Bove mobilizou diversas entidades para abrir um atendimento em caráter emergencial.

A ação envolveu entidades públicas e privadas, e a Secretária Elizabeth Jucá, da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese), conseguiu – junto à secretaria de Cultura – que fosse cedido o espaço da Serraria Souza Pinto, grande o suficiente para eles armarem um centro emergencial de acolhimento de pessoas em situação de rua, com condição para se ter higiene básica e alimentação. Esse espaço foi chamado de Canto da Rua Emergencial, com uma metodologia de acolhimento que, inclusive, encaminhava as pessoas que tivessem casa de volta para suas residências. Isso tudo com a ajuda de vários stakeholders, incluindo secretarias municipais como a de Ação Social, fundações e instituições financeiras.

Quando o Canto da Rua Emergencial começa a mudar?

Houve um momento de retomada dos serviços, quando a pandemia pareceu mais controlada, e o espaço temporário foi requisitado. A Pastoral identificou que o serviço de acolhimento não acabaria e, por ação do Ministério Público, o governo do Estado localizou um terreno no bairro de Santa Inês, que foi cedido para funcionamento o Canto da Rua, não mais como um serviço emergencial.

Foi nesse momento que se passou a pensar em sistematizar a metodologia utilizada no Canto Emergencial, para que pudesse ser aplicada permanentemente. Muitos stakeholders apoiam a iniciativa e a Fundação Dom Cabral foi chamada para atuar no planejamento estratégico e no desenho do modelo de gestão, para assegurar rigor técnico e accountability da iniciativa.

Já havia um relacionamento com a Fundação Dom Cabral?

Foto: Divulgação/FDC

Sim. A própria Irmã Cristina Bove tinha uma proximidade com Dom Serafim, que é ligado ao projeto da Fundação Dom Cabral que, por sua vez, tem iniciativas com organizações sociais.

Fomos procurados para saber se poderíamos ajudar na construção do planejamento estratégico do projeto. Fui acionada porque sou professora de estratégia e tenho trabalhado com o que se chama de estratégia aberta na Fundação. Trata-se de uma metodologia de construção estratégica feita por diversos atores, também chamada de open strategy.

Ela se diferencia de uma estratégia fechada pela transparência do processo e porque se abre para ideias e contribuições de atores externos. Quando a Pastoral nos procurou, a sugestão era que aplicássemos a estratégia aberta no Canto da Rua.

A participação da Fundação Dom Cabral também envolve outras frentes?

Sim. O aspecto acadêmico também é importante. Então, além da assessoria na construção da estratégia aberta do projeto, também agregamos um estudo do fenômeno, de forma a gerar conhecimento, e de modo que esse conhecimento possa ser aproveitado para beneficiar outras iniciativas similares.

Um processo de estratégia aberta, na prática, requer que sejam convidados vários stakeholders para participar: de profissionais das secretarias municipais a voluntários da Pastoral e associação das pessoas de situação de rua – o que a Pastoral já fazia, tradicionalmente. Mas ainda não são bem conhecidos os detalhes do processo, entre eles como as colaborações são negociadas, na prática, com agentes tão diversos.

No final do ano passado, o planejamento foi apresentado para autoridades públicas e privadas, incluindo os apoiadores financeiros do projeto. O resultado foi o mapa estratégico que mostra a metodologia de acolhimento e outras ações que podem ser agregadas, incluindo as de moradia, cultura e lazer. Houve também a participação de pesquisadores, como outros acadêmicos que estudam o fenômeno das pessoas em situação de rua, colaborando para que o Canto da Rua traga cidadania a essa população.

Uma preocupação constante deles, presente inclusive no próprio mapa estratégico, é a importância de as pessoas nessa condição serem as protagonistas das iniciativas. Com o mapa, o plano de ação começou a ser colocado na prática no novo espaço do projeto, que foi inaugurado com diversas iniciativas de empreendedorismo da população em situação de rua, inclusive com produção de sabonetes e de materiais de limpeza.

Como vocês, como professores, estão processando as informações dessa experiência?

Estamos trabalhando em várias frentes. Uma delas é o conhecimento acadêmico, para o qual precisamos seguir o rigor do método científico. Dessa forma, envolvemos vários colegas da Fundação Dom Cabral no grupo. Há professores estudando o processo da estratégia e outros estudam como se governa esse processo colaborativo.

Há muitas pessoas envolvidas na iniciativa do Canto da Rua e existe a adoção de metodologias consagradas internacionalmente, como a Housing First, e outras que estão sendo criadas. Tem-se a expectativa de que todos tenham voz, mas o processo decisório é mais complexo de ser gerenciado.

Como se trata de uma iniciativa pública, também é necessário garantir a maior transparência possível, diferentemente de organizações privadas, que são muito seletivas na divulgação de suas estratégias. Então, navegamos em duas áreas, a acadêmica, da construção de conhecimento sólido, de publicação de artigos, e também na metodologia de trabalho na prática, usando a estratégia aberta para transformar projetos e também poder replicá-los em outras iniciativas similares, de apelo social ou mesmo para organizações privadas que se ambrem cada vez mais a projetos abertos de inovação e estratégia.

E o aprendizado para a Fundação Dom Cabral?

Nós acompanhamos o Canto da Rua com uma bagagem teórica sobre estratégia aberta, mas ao mesmo tempo estamos vendo na prática a construção dela. Continuamos a ter um duplo chapéu, de estudar e atuar como orientadora técnica. Fazemos pesquisa e orientação. É o que se chama de pesquisa-ação.

Do ponto de vista acadêmico, sabemos que implementar uma estratégica é mais difícil e que 75% do que foi planejado não é implantado. Por isso a Fundação tem participado com a formação da gestão das pessoas que atuam no Canto da Rua. É uma demanda que foi pedida por eles, para gestão de pessoas, pois a experiência anterior envolvia somente voluntários, e agora existe uma estrutura maior, com financiamento, com contratados no regime CLT. Hoje, na fase de implementação, o foco é no aprimoramento da gestão e na construção de uma governança.

Como uma organização privada poderia também aproveitar essa experiência?

Não é comum, mas há uma tendência de as organizações abrirem mais a sua estratégia. Não de forma tão ampla como uma organização social pública. Mas, assim como existe a inovação aberta, podemos agregar experiências de estratégia aberta.

Nós temos discutido isso na Fundação Dom Cabral, por exemplo, em programas de desenvolvimento especifico para as comunidades de RH em organizações privadas, onde falamos de estratégia aberta. Em outros programas, falamos na atuação estratégica em ecossistema, que também implica um grau de abertura. O que notamos é um interesse em trazer a discussão para as empresas. O fato de se colocar mais pessoas na mesa para conversar – que é uma característica da estratégia aberta – é incontornável.

E como você resumiria o Canto da Rua?

Foto: Reprodução/Perfil LinkedIn Maria Elisa Brandão

É uma iniciativa que não tem perfil assistencialista. Pelo contrário. Trata-se de um projeto para que as pessoas superem a situação de rua, que tem a meta de colocar em andamento uma metodologia que ajude as pessoas a superar essa condição. O Canto da Rua defende o protagonismo das pessoas que estão sendo acolhidas. Vimos isso na inauguração do novo local: os primeiros a falarem foram os diversos representantes de pessoas que estão superando a situação de rua.

O projeto quer ajudar de fato as pessoas a superar sua condição atual, com iniciativas para agregar renda, moradia e outros benefícios. Não é um lugar para apenas se tomar banho, alimentar-se e depois voltar para a rua.




Os assuntos mais relevantes diretamente no seu e-mail

Inscreva-se na nossa newsletter