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“É preciso olhar as pessoas não como números, mas como vidas”, diz Maha Mamo

Para Maha Mamo, que nasceu apátrida, as ações de diversidade e inclusão são fundamentais para que todas as pessoas tenham seus direitos preservados

maha mamo Maha Mamo (Foto: Divulgação)
por Redação agosto 21, 2023
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    Impacto positivo e legados sustentáveis

Nascida no Líbano e filha de pais sírios, Maha Mamo cresceu como apátrida, condição que não lhe dava direitos básicos, como ter documentos, assistência médica ou educação, por exemplo. Isso aconteceu porque no Líbano só quem tem pai libanês tem direito à nacionalidade. Já na Síria, o casamento inter-religioso é proibido – e seu pai era cristão e a mãe, muçulmana. 

“Com isso, eu e meus irmãos não tivemos direito a documentos. Foi um desafio muito grande para meus pais, que tiveram de lutar muito para termos acesso à educação ou saúde, entre outras coisas”, contou Maha, que por 30 anos viveu nesta condição. 

Hoje, com nacionalidade brasileira, ela representa a imagem da campanha da agência da ONU para refugiados (ACNUR), chamada I Belong, e atua como palestrante global da ONU, buscando conscientizar a sociedade civil, o poder público e o setor privado sobre o tema, e já visitou 23 países para levar essa mensagem. Neste mês de agosto, Maha será a palestrante do evento de encerramento do Basis, uma trilha de capacitação promovida pela Fundação Dom Cabral, com uma turma exclusivamente voltada para gestores de organizações de proteção às pessoas refugiadas.

Sua história como ativista de direitos humanos é contada no livro “Maha Mamo: a luta de uma apátrida para sobreviver”, escrito juntamente com Dárcio Oliveira, e em breve será tema de um filme, anunciado pelo cineasta Bruno Barreto. 

Segundo Maha, a diversidade e a inclusão precisam ser colocadas em prática. “Minha luta é fazer com que as pessoas entendam o que é ser um apátrida e todos os desafios que um indivíduo enfrenta por causa disso”, disse ela, que também defende causas relacionadas a refugiados e pessoas em situação de vulnerabilidade por tais razões. 

“Hoje, no mundo, existem mais de 10 milhões de apátridas, cada caso é um caso, essa apatridia tem razões diferentes e a grande maioria das pessoas não tem conhecimento disso nem das dificuldades que alguém sem direitos enfrenta”, contou Maha, em entrevista exclusiva ao Seja Relevante. Conheça, a seguir, mais detalhes sobre sua trajetória e como a ativista leva esta mensagem a governos, órgãos internacionais, empresas e universidades em todo o mundo. 

Poderia detalhar os desafios que enfrentou em função da apatridia?

Uma pessoa sem documentos não consegue ter seus direitos básicos preservados. Como nasci no Líbano, filha de pais sírios cujo casamento não era reconhecido na Síria, não tive direito a educação ou serviços de saúde. Eu e meus irmãos conseguimos estudar, graças à luta de minha mãe e à ajuda de pessoas que se sensibilizaram pela nossa condição. Mas, por exemplo, eu nunca conheci a Síria, pois não tinha documentos para sair do país.

Tivemos que brigar para termos as coisas mais básicas da cidadania, como o direito de ir e vir. Quando me dei conta do que significava a ausência de nacionalidade, comecei a contar minha história para muitas pessoas. Foi assim que consegui estudar, no Líbano, em uma universidade que me aceitou. Cursei Gestão de Sistemas de Informação e fiz MBA, mas pela falta de nacionalidade, eu não podia trabalhar, ter um emprego, ter renda.

Acabei vindo para o Brasil em 2014, por meio de uma abertura do governo para receber refugiados sírios. Na ocasião, recebi um documento de viagem que me permitia sair do Líbano para o Brasil. Mas, não tivemos nenhum apoio do governo além disso. 

Assim, os desafios foram muitos. Eu não falava português, por exemplo. Tinha qualificações para trabalhar, mas havia a barreira da língua. Pessoas apátridas enfrentam tudo isso. 

Como você define a apatridia?

É como se a pessoa não existisse, pois legalmente ela não foi registrada, não recebeu documentos. Em função disso, não tem direitos, não pode se matricular em uma escola, não consegue ter um emprego, não é atendida em um hospital, não pode sair do país. E isso dá margem a diversos riscos e situações que afetam os direitos humanos. Ser apátrida é ser privado de direitos. 

E o tema não é conhecido. Hoje, existem mais de 10 milhões de pessoas nessa condição, por diferentes motivos, e não há leis em seus países que possibilitem a cidadania. As pessoas se tornam apátridas porque existem brechas legais em seus países, nas quais elas acabam se enquadrando, como aconteceu com minha família.

Existem, no mundo, 24 países onde a mulher não pode passar a nacionalidade para os filhos – e Líbano e Síria fazem parte desta lista. No Brasil, quem nasce dentro do território, é brasileiro. Na Europa, no entanto, a nacionalidade vem por descendência. 

Há casos como os da União Soviética, onde todos tinham documentos, eram legalizados. Porém, como a União Soviética não existe mais, muitas pessoas não foram registradas, pois seu país deixou de existir. E há motivos diversos, religiosos, discriminatórios. 99% das pessoas não sabem o que é ser um apátrida e não têm noção da dimensão do problema.

Hoje, você é cidadã brasileira. Como isso aconteceu?

Quando vi que no Líbano eu não poderia “existir”, comecei a mandar cartas para diversas embaixadas. Nessa ocasião, a Síria enfrentava uma guerra civil e o Brasil, em uma ação humanitária, abriu as portas para os refugiados. Embora eu e meus irmãos não nos enquadrássemos nesta situação, conseguimos a permissão para sair do Líbano e viajar para o Brasil.

Quando cheguei, consegui um CPF e depois outros documentos, como carteira de trabalho. Aprender a língua foi um grande desafio, uma barreira para o trabalho. Apesar do acolhimento, o Brasil não tinha, na ocasião, uma lei que tratasse de apatridia.

Maha Mamo
As irmãs Souad e Maha Mamo (Foto: © ACNUR/Victoria Hugueney)

Comecei a divulgar o problema e me aproximei da ACNUR no Brasil. Assim, me tornei palestrante e ativista de direitos humanos. Minha cidadania brasileira veio durante uma cerimônia da entidade em Genebra, na Suíça, em 2018. Já visitei 23 países, com apoio da ACNUR, palestrando sobre o tema. Nosso objetivo é acabar com a apatridia até 2024, e para tanto buscamos conscientizar a sociedade civil, órgãos de governo e também o setor privado. O objetivo é mostrar que pessoas “diferentes” não devem ser tratadas como excluídas, a diversidade é necessária e importante. 

Como isso passou a fazer parte da legislação brasileira?

A definição de apatridia passou a fazer parte da Lei 13445/2017 (lei de imigração), que trata de direitos e deveres do imigrante. Ela tem um capítulo sobre apatridia, definindo o que é uma pessoa apátrida, tem o reconhecimento de apatridia, tem a facilitação de naturalização. Por causa disso, a legislação brasileira se tornou um exemplo mundial. 

No entanto, para receber refugiados, não podemos dizer que o Brasil é exemplo, pois não existem programas para ajudar, ensinar língua, facilitar a inclusão.

Você considera que existe perspectiva de mudar esse cenário?

Minha atuação principal é junto ao setor privado. O governo não oferece nenhum tipo de programa para incluir estas pessoas. Vemos que existem pessoas que trabalham com sentido, abraçaram a causa, mas ainda não há apoio. 

Já o setor privado pode ganhar muito com a inclusão e contribuição de refugiados e imigrantes. A diversidade é um diferencial para as empresas e deve fazer parte de suas iniciativas no âmbito social. 

Como as grandes organizações podem contribuir para receber, acolher e incluir estas pessoas? Existe espaço para isso?

Espaço existe, mas ainda temos pela frente um longo caminho de conscientização. Posso dizer que estamos trabalhando em alguns projetos que focam em inclusão, apoiados por grandes empresas. É preciso que todos entendam e aceitem a diversidade, e as organizações também têm muito a ganhar com isso, com a contribuição dessas pessoas. 

Trata-se de um projeto muito importante, tanto para as empresas quanto para as pessoas que chegam ao país e precisam de emprego digno, de renda, de menos barreiras. 

As pessoas nesta situação, sejam refugiadas ou apátridas, têm algum tipo de suporte para educação, integração social e conquista de autonomia?

maha mamo
Migraflix (Foto: Reprodução/BrazilFoundation)

Existem instituições que contribuem para isso, como ONGs, universidades e a própria ACNUR, em vários estados brasileiros. Em São Paulo, por exemplo, existe a Migraflix, uma instituição que ensina os refugiados e imigrantes a empreenderem e, com isso, conseguirem renda. Mas é um trabalho difícil, muitas vezes a pessoa não tem um telefone, não tem acesso à internet. Ainda há muita falta de informação, de orientação, as pessoas ficam em situação de vulnerabilidade e não sabem onde ir, que órgão procurar. Ao mesmo tempo, enfrentam barreiras por causa da língua ou mesmo por preconceito, o que faz com que não consigam ter meios de sobreviver no país. Então, não adianta o Brasil acolher refugiados se não existem meios que permitam sua permanência no país. 

Por isso, a principal mensagem que levo é de que é preciso olhar para as pessoas não como números, mas, sim, como vidas. Queremos o apoio na causa de refugiados e apátridas, causa dos imigrantes, de pessoas vulneráveis.




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