A maior parte da população sem acesso ao saneamento básico é formada por jovens de até 20 anos, racial e etnicamente definidos como pretos, pardos ou indígenas. São pessoas cuja renda familiar não supera R$ 2,4 mil mensais. O recorte também indica indivíduos que têm nível de ensino fundamental ou menos de um ano de estudo. 

Para Luana Pretto, presidente executiva do Trata Brasil, organização da sociedade civil de interesse público, a descrição acima prejudica o entendimento da importância do saneamento básico justamente por parte de quem mais precisa dele. 

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Na avaliação dela, o assunto precisa ser priorizado no debate das eleições municipais – neste e nos próximos anos –, principalmente considerando que a gestão do saneamento é de responsabilidade dos municípios. 

A presidente executiva do Trata Brasil acredita que a cobrança de um plano de saneamento dos candidatos a prefeito é fundamental. Com o novo Marco do Saneamento, as cidades menores e com menos recursos podem, inclusive, consorciar-se com cidades maiores, criando estruturas regionais de saneamento básico. 

As prefeituras, aliás, são um dos focos do trabalho do Trata Brasil na área de saneamento básico e proteção de recursos hídricos. Neste caso, a instituição tem incentivado as pequenas cidades a entenderem as vantagens de operar regionalmente, aproveitando subsídios cruzados, entre outros pontos. 

Outro trabalho da instituição é mapear o status do saneamento em todo o Brasil, trazendo dados atualizados, que permitem entender o setor. Anualmente, o Trata Brasil divulga o ranking do segmento, que é referência no país. 

“Precisamos entender que o saneamento básico não é só custo, mas sim uma ferramenta de mudança da vida das pessoas”, resume Luana, que representou o Trata Brasil em agenda realizada sobre o tema pela Imagine Brasil, uma iniciativa da Fundação Dom Cabral (FDC).

Da esquerda para a direita: Adriano Stringhini, Virgilio Viana, Luana Pretto, Viviane Barreto e André Machado (Foto: Fábio Chialastri)

Gesner Oliveira, sócio da GO Associados e ex-presidente da Sabesp, no período de 2007-2011, reforça o argumento de Luana. Para ele, existe uma grande dificuldade de associação – por parte da população mais vulnerável – entre a falta de saneamento básico e vários problemas. 

Oliveira lembra que o resgate de recursos hídricos pode ser um aliado nesse processo. Ele cita como exemplo programas focados na limpeza de córregos, que envolvem lideranças comunitárias, e onde se pode aprender muito sobre governança colaborativa.

Mudança climática na agenda 

Outra frente de conscientização é a adoção de soluções inovadoras do ponto de vista técnico, como aquelas ligadas à oxigenação da água, que mostram resultados mais imediatos. 

Como a maioria dos projetos na área de saneamento envolve décadas de aplicação, trazer resultados – mesmo que parciais – em um espaço de tempo mais curto pode incentivar a participação das comunidades beneficiadas, na avaliação do ex-presidente da Sabesp. 

Sobre as concessões ampliadas com o novo Marco do Saneamento, o especialista lembra que os desafios, em alguns casos, foram maiores do que se previa. A complexidade de atender regiões rurais e comunidades urbanas é um dos exemplos. Na avaliação dele, as concessões só serão rentáveis se tiverem uma atuação eficiente, que combina tecnologia e engenharia social. 

Oliveira também defende que a agenda do saneamento deve envolver a questão das mudanças climáticas. “O Brasil tem dois grandes problemas, duas tragédias anunciadas: secas e enchentes”, argumentou. Para ele, o saneamento pode integrar mais os segmentos envolvidos, com destaque para iniciativas de drenagem e de reuso de água, entre outras. 

Foto: Reprodução/ Juntos pela Água

A mitigação de eventos ligados às mudanças climáticas pode, inclusive, influir no mercado de seguros, reduzindo riscos e diminuindo os prêmios nos contratos entre seguradoras e concessionárias do setor. 

Gargalos

Os gargalos no saneamento também se estendem para a estruturação de projetos e, consequentemente, impactam no financiamento. Esse ponto foi abordado por Eduardo Nali, chefe do Departamento de Saneamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

O executivo destacou que o Marco do Saneamento trouxe segurança jurídica, mas a possibilidade de crescimento de agências reguladoras é um desafio. 

De acordo com os especialistas, já haveria quase uma centena delas. E mais: diferente de outros ramos da infraestrutura, onde se tem apenas uma agência, caso da Aneel para energia elétrica e Anatel para telecomunicações, em tese cada cidade pode a sua estrutura de regulação.  

Ainda mais complexa é a liberação de projetos – ainda que bastante viáveis – se não houver o cumprimento da agenda regulatória, o que pode ser demorado com a diversidade de agências.

Sobre a não concretização de consórcios regionais, Nali lembra que “muita gente está ficando para trás”. Nos projetos da área, ele vê como importante atrair prefeituras para a criação de blocos regionais, o que facilitaria a estruturação de financiamentos.

Desafio da regulação

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Foto: José Cruz/Agência Brasil

Após o Marco Regulatório, o executivo lembra que o BNDES participou da estruturação de 12 leilões de companhias do segmento. Neli cita o ano de 2022 como ponto de mutação no padrão de aprovação de financiamento do banco. 

Em 2018, por exemplo, a instituição tinha aprovado R$ 1,79 bilhões, caindo para a casa das centenas de milhões até 2021. No ano seguinte, houve o pico de R$ 20 bilhões, seguido de outros R$ 10,4 bilhões, em 2023. No triênio 2024-2026, a média anual estimada é de R$ 5 bilhões. 

Um dos destaques é a emissão de debêntures incentivadas, uma das formas de financiamento do segmento. Em 2023, o volume dessa modalidade chegou a R$ 15,5 bilhões (pouco mais da metade viabilizada via BNDES). Nos três anos anteriores, a média foi de aproximadamente R$ 3 bilhões ao ano.

Paulo Pereira, secretário-executivo do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável (CDESS), órgão do governo federal ligado à Presidência da República, também participou do encontro promovido pela iniciativa Imagine Brasil. 

Como professor de direito, Pereira destacou o desafio da existência de várias agências reguladoras do setor e sugeriu, como possibilidade de melhoria, a uniformização de parâmetros de controle. Essa ação poderia padronizar a fiscalização e a regulação do saneamento, trazendo mais segurança jurídica. 

Para ele, o saneamento é um tema de sustentabilidade e o segmento estaria bem encaminhado em relação à transformação ecológica e energética. “Ainda estão associando pouco os temas, mas é uma associação forte e necessária”, reforçou. 

Pereira também antecipou que o Conselho teria interesse em internalizar o debate sobre as prioridades do saneamento, entregando um resultado para a Presidência. 

Entre as prioridades, a discussão entre os especialistas mostrou que a regulação – bastante citada – e a tributação estão entre os principais desafios no radar do segmento. Neste último caso, o provável impacto no preço das tarifas é um risco levantado por vários dos participantes do evento orquestrado pela iniciativa Imagine Brasil. 

Os dois temas foram listados também pelo trio de professores da FDC que coordenou o encontro – Viviane Barreto, Virgílio Viana e Adriano Stringhini. Eles lembraram que a universalização dos serviços de tratamento de água e de esgotos ainda é um desafio, com impacto principalmente entre a população mais pobre, que enfrenta riscos como proliferação de doenças, alagamentos, infiltração de substâncias potencialmente tóxicas no solo, podendo alcançar o lençol freático, entre outros problemas.