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Por que as empresas são importantes para o enfrentamento da violência contra a mulher?

Sempre que uma empresa busca o equilíbrio de gênero nas diferentes funções e cargos organizacionais, ela dá um passo em direção ao combate à violência contra a mulher

violencia contra a mulher © - Shutterstock

Por

Marina Spínola

Diretora de Relações Institucionais e Sustentabilidade da FDC

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A 10ª edição da Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, divulgada na semana passada em Brasília, mostra que um terço das mulheres sofreram algum tipo de violência doméstica ou familiar no ano passado e quase oito a cada 10 mulheres acreditam que o problema aumentou nos últimos 12 meses. Se o estudo revela um drama nacional que se perpetua nas sombras do ambiente privado – da casa e da família – por que as empresas deveriam se ocupar deste assunto? 

Há muito tempo as organizações deixaram de ser entendidas como isoladas do território social em que atuam, como tão somente meios de produção econômica. Em especial, a partir desse século, os chamados stakeholders passaram a cobrar que as companhias se importem com o que acontece com o mundo em sua volta e, principalmente, se responsabilizem pela construção coletiva de soluções para grandes desafios que persistem na sociedade. São inúmeras as causas sociais que ganharam centralidade na agenda estratégica das empresas: o combate à fome, o déficit habitacional e, mais recentemente, a questão climática está atraindo a atenção de lideranças mais conscientes de seu papel social. 

Violência contra a mulher – entendendo além da ponta do iceberg

© – Shutterstock

No caso da violência contra a mulher, gravíssima violação de direitos humanos que perpassa todas as classes, raças, religiões e culturas, não seria diferente. Mas é ainda mais crucial o papel que as empresas podem desempenhar diante do problema. Daniela Grelin, presidente do Instituto Avon, cofundadora e líder da Coalizão Empresarial pelo Fim da Violência contra Mulheres e Meninas, utiliza a imagem de um iceberg para explicar o fenômeno da violência de gênero. A ponta do bloco de gelo acima da superfície representa os casos e situações de violência que tomamos conhecimento. Na última semana de fevereiro, por exemplo, os jornais noticiaram a morte de Milena Dantas, 53 anos, assassinada a facadas pelo próprio marido, com quem era casada há 29 anos, no interior de São Paulo. Milena faz parte de uma das mais tristes estatísticas do Brasil: 722 mulheres foram vítimas de feminicídio no país no primeiro semestre de 2023. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 revela, também, outra trágica realidade: o nosso país vive o ápice de registros de estupro na história – foram quase 80 mil vítimas registradas nos boletins de ocorrência no ano de 2022, e quase 90% delas são mulheres. Do total, 61,4% dos estupros registrados são contra menores de 13 anos. 

Parte dessas mulheres estão dentro de nossas empresas – ou são filhas de nossos colaboradores e colaboradoras. E mais: elas também são agredidas dentro do ambiente laboral. Segundo dados de pesquisa dos Institutos Patricia Galvão e Locomotiva, 76% das trabalhadoras entrevistadas reconhecem já terem passado por um ou mais episódios de violência e assédio no trabalho. 

Embora façam parte da ponta visível do iceberg, na maior parte das vezes, essas mulheres são invisibilizadas e negligenciadas – seja pelo preconceito, pelo medo do estigma ou pela falta de conhecimento da empresa para identificar os sinais e realizar ações de prevenção, proteção e acolhimento. Embora o absenteísmo decorrente da violência doméstica e familiar custem, anualmente, às empresas, mais de R$ 975 milhões, as organizações ainda não avançaram, de forma consistente, na construção de políticas e ações para combater o problema – dentro e fora dos ambientes de trabalho. Sem elas, essa pauta não avançará no ritmo que é preciso. 

As empresas na transformação da cultura que gera e perpetua as violências

O modelo do iceberg ajuda a entender por que as empresas têm um importante papel a desempenhar nessa agenda, que é coletiva e interinstitucional – também precisa do protagonismo do Estado e da sociedade civil. Na parte de baixo da estrutura de gelo, estão os padrões culturais e modelos mentais da nossa sociedade. Ou seja, o que esperamos de comportamentos, atitudes, características de homens e mulheres é definido dentro de um tempo-espaço, que é uma construção histórica e social. Sempre que a mulher não se encaixa nesses padrões preestabelecidos e esperados socialmente, há espaço para a violência acontecer. 

Essa construção social e histórica forja lugares de privilégio e de poder para o padrão normativo masculino. Se alguém quiser tirar a prova basta pensar na diferença das propagandas que ainda existem nos dias de hoje para venda de brinquedos considerados para “meninos” e para “meninas”. Ou, então, compre shorts de futebol para uma menina jogar – qual é o padrão corporal utilizado nos moldes dos trajes dos esportes tradicional e historicamente dominados pelos homens? Pesquise quando as mulheres puderam participar da mais prestigiada competição de ciclismo do mundo, o Tour de France. E, por curiosidade, compare o valor dos prêmios concedidos aos vencedores da prova masculina e da edição feminina. Ou, então, de volta ao mundo corporativo, investigue qual a diferença salarial entre homens e mulheres e se essas diferenças diminuem à medida que o cargo (e o poder) aumenta. 

violencia contra a mulher
© – Shutterstock

As desigualdades de gênero estruturam as raízes do sofrimento físico e mental, violação e morte que atingem as mulheres de todas as idades, em todo o mundo. É essa construção social de comportamentos e posições esperados para homens e mulheres que cria e ajuda a perpetuar as violências – nesta matemática fatal entram também a ineficácia de políticas, insuficiência ou má gestão de recursos públicos e a dificuldade de implementar as leis, criando um absurdo ambiente de impunidade. E, assim, historicamente, as diferenças são transformadas em desigualdades. E das desigualdades surgem as múltiplas formas de violência. Um ciclo sem fim, como mostram os estudos, ano após ano.

É por isso que é urgente compreender que os comportamentos tidos como “naturais” entre os homens e mulheres formam a raiz do problema da violência de gênero. Como construções sociais e históricas, esses comportamentos podem – e devem – ser questionados, revisitados e ajustados. E as empresas têm muitas condições de participar deste processo de mudança cultural. Aliás, sem elas, essa transformação não acontece. 

Na prática, o que é possível ser feito?

© – Shutterstock

Sempre que uma empresa busca o equilíbrio de gênero nas diferentes funções e cargos organizacionais, ela dá um passo em direção a essa mudança. Toda vez que uma organização elimina vieses inconscientes que dificultam o acesso ao desenvolvimento profissional e a ascensão de mulheres na carreira, ela sinaliza que as diferenças importam e não podem servir para hierarquizar as pessoas. A organização que implementa ações afirmativas indica a possibilidade de desafiar as construções sociais que preconizam capacidades e competências por gênero. A empresa que promove debates e reflexão com os homens sobre seus sentimentos e angústias e sobre a violência doméstica avança na construção de modelos de masculinidade saudável e ambiente de trabalho seguro. São alguns exemplos de ações desenvolvidas pelas empresas que contribuem para mudar a realidade violenta que ameaça as mulheres no Brasil e no mundo. É assim que a gente muda a parte do iceberg que fica abaixo da superfície. 

Para além do impacto financeiro e na produtividade, já é hora de o mundo empresarial incorporar o enfrentamento da violência de gênero como parte de sua responsabilidade com a evolução da sociedade. Impossível conviver com esses números alarmantes e crescentes que denunciam um certo grau de conivência com a barbárie – ou pelo menos com seu silenciamento. Certamente, esse seria o melhor presente que as empresas poderiam oferecer ao mundo e a nós, mulheres, no mês de março. O presente que mudará o curso de milhares de vidas. Um presente capaz de renovar a esperança por futuros bem melhores do que esses que nos avizinham. 

Sete ações que as empresas podem implementar para o enfrentamento da violência contra a mulher

  1. Conscientização da alta liderança sobre as relações de gênero e os impactos na cultura da violência.
  2. Adesão à Coalizão Empresarial pelo Fim da Violência contra Mulheres e Meninas, para se desenvolver sobre o tema, trocar experiências e articular redes interinstitucionais dedicadas à agenda.
  3. Estruturação de programa de compliance, com canal de denúncia independente, treinamento da equipe e fluxo específico para situações de discriminação, assédio e violência de gênero. 
  4. Implementação de serviço especializado no atendimento a mulheres colaboradoras em situação de violência, de preferência com parcerias com equipamentos públicos de defesa dos direitos da mulher. 
  5. Treinamento de gestores para lidar com relatos de violência contra mulheres na equipe, identificar sinais de violência e proceder acolhimento às vítimas.
  6. Programa de desenvolvimento de carreiras femininas e outros grupos minorizados, com equidade de oportunidades e construção de ambientes psicologicamente seguros. 
  7. Implementação de Programa de Desenvolvimento de Masculinidades Saudáveis, com ações de diálogo aberto e escuta empática com os homens da organização. 
Marina Spínola (Foto: Divulgação)

*Marina Spínola é diretora de Relações Institucionais e Sustentabilidade da FDC




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