O Brasil registrava mais de 670 mil mortes por Covid-19 até o começo de julho último. Em número de casos conhecidos confirmados, o país contabilizava mais de 32,5 milhões. São números complicados, mas as estatísticas poderiam ser ainda piores. Uma das iniciativas que reduziram danos, sem dúvida, foram os testes obrigatórios para validar as vacinas. A cientista brasileira Sue Ann Costa Clemens, com mais de 25 anos de experiência em desenvolvimento de vacinas, esteve à frente de uma dessas iniciativas, mais exatamente a que testou a tecnologia Oxford/Astrazeneca. Os bastidores desse processo estão no livro História de uma vacina, publicado pela editora História Real, em 2021. 

Os números da empreitada que Sue Ann coordenou podem ser resumidos de várias formas. A primeira delas é montagem de seis centros de testagem no Brasil, por onde passaram mais de 10 mil voluntários. O processo, nada simples, demandou financiamento, montagem de equipes técnicas e, principalmente, estratégia e organização. Chefe do comitê científico da Fundação Bill e Melinda Gates, a cientista é professora convidada da universidade de Oxford e criadora do primeiro mestrado em vacinologia do mundo, na Itália. 

Além das credenciais técnicas, o que mais chama a atenção na narrativa de Sue Ann é sua capacidade de gestão: ela usa o networking internacional, identifica profissionais adequados no Brasil, aciona fontes de financiamento, interage bem com autoridades locais e, acima de tudo, faz uma excelente gestão de pessoas.

Ela conta a história do projeto de testar a vacina no Brasil, mas não se esquece de nomear os profissionais que participaram da corrida contra o tempo. E que corrida: em um ano a estrutura citada acima foi montada e os testes foram levados a cabo. 

Apesar de morar em Siena, onde fica a base do mestrado em vacinologia, a cientista estava no Brasil quando foi procurada pelo chefe do Oxford Vaccine Group, Andrew Pollard. A meta era fazer do Brasil o primeiro braço internacional da pesquisa de vacina para a Covid-19 que a famosa universidade do Reino Unido estava desenvolvendo. Mais exatamente a fase 3, última etapa dos testes e que confirma a eficácia da vacina. Além de conhecidos, Pollard tinha como referência a liderança de Sue Ann nos testes para desenvolvimento da vacina contra o rotavírus, que envolveu nada menos do que 60 mil voluntários na América Latina nos anos 2000. 

Depois de aceitar o desafio, a saga da cientista começou focada: ela entrou em contato com Lily Weckx, do Centro de Referência para Imunobiológicos Especiais (Crie), da Unifesp, que poderia ser o primeiro centro de testes. Ao mesmo tempo acionou a Fundação Bill e Melinda Gates para buscar o financiamento que viabilizaria o centro e a contratação das equipes. Com verba já direcionada para outros projetos contra a Covid-19, a fundação americana não poderia contribuir. A alternativa recaiu sobre a Fundação Lemann, que entrou no processo. 

Esse primeiro exemplo de ação vai se repetir ao longo do projeto de testar a vacina no Brasil. E sempre da mesma forma: Sue Ann conta o desafio, nomeia as pessoas e instituições que viabilizaram a criação dos centros, e indica quem – assim como Lily – se engajou na jornada e quais são as qualificações técnicas e pessoais dos profissionais envolvidos.

O resultado: enquanto no Reino Unido, a meta era recrutar 10 mil voluntários, o Brasil ficaria com 2 mil. A velocidade imprimida por Sue Ann e equipe – inclusive na tradução e adaptação do protocolo de testes – elevou a meta brasileira para 5 mil. No final, como sabemos, a meta superou os 10 mil. 

E superou porque os envolvidos literalmente quebraram paredes. O freezer especial, onde seriam armazenados os primeiros lotes, operaria a 80 C negativos, mas não passava pela porta da sala de vacinação do Instituto D´Or, o centro de testagem em São Paulo. A solução foi derrubar as paredes.

Outros desafios viriam, mas o recrutamento de 10 mil voluntários já estava adiantado em outubro de 2020. Cada um deles seria acompanhado durante 12 meses, o que exigiria uma gestão atenta, inclusive com ligações diretas para monitorar os estados de saúde. 

Lições da vacina de Oxford

Antes de começarem os testes de fato, Sue Ann enfrentou um processo de 44 dias negociando com autoridades locais, inclusive a Anvisa, ao mesmo tempo que montava a estrutura dos centros, com equipe e fontes de financiamentos. E isso com mudança de ministros da Saúde.

Para saltar no tempo, vamos resumir: em 16 de maio de 2021 a primeira dose da campanha de vacinação usando Oxford/Astrazeneca aconteceu em Botacatu, interior de São Paulo. Em dez horas, o centro vacinou 66 mil pessoas e esse fato só foi possível pelos resultados dos testes com mais de 10 mil voluntários no projeto coordenado por Sue Ann.

O mesmo ritmo foi acompanhado na segunda dose na cidade escolhida como piloto. Alguns meses depois, os dados indicavam que a incidência da doença havia sido reduzida em 87% e a redução das hospitalizações em 98,3%. A pesquisa em Botucatu também identificou o sequenciamento genético, mostrando que a variante P1 do vírus, brasileira, já era predominante. 

É possível tirar várias conclusões do “História de uma vacina”. Primeiro, o valor da ciência e dos cientistas. Depois, a capacidade de gestão de Sue Ann e sua destreza em usar o networking que acumula para fazer o projeto avançar. E mais ainda: o enorme capital humano presente no Brasil, seja via instituições ou seja via profissionais da área de saúde.