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“Seviração”, literatura e academia: a pluralidade constrói grandes mentes e projetos, mostra Grazi Mendes

A Head de diversidade, equidade e inclusão da multinacional de tecnologia ThoughtWorks, conta como a “seviração”, a literatura e a formação acadêmica moldaram os seus raciocínios.

grazi mendes Grazi Mendes
por Redação setembro 23, 2022
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Por convicção ou por pressão, as organizações terão de trabalhar para promover ambientes mais inclusivos. E não adianta diversity washing, pois a sociedade está claramente com pouca tolerância para a incoerência. Mais ainda: é preciso começar a projetar das margens para o centro e, sem equilíbrio social, o equilíbrio climático também não será alcançado, ameaçando a nossa existência, já que “não tem um plano B, neste caso”. Às tecnologias, cabe a missão de melhorar a condição social e humana, e isso só acontecerá se as pessoas que as desenvolvem forem conscientes e plurais.

grazi mendes
© – Shutterstock

Nesta entrevista exclusiva, Grazi Mendes, head de diversidade, equidade e inclusão da multinacional de tecnologia ThoughtWorks, divide as ideias apresentadas nesta introdução e revela como a “seviração”, a literatura e a formação acadêmica moldaram esses raciocínios. Acompanhe.

Iniciamos o caminho para esta entrevista em um evento onde a tônica era que a diversidade promove a inovação. O que você pensa a respeito?

Grazi Mendes – Diversidade, equidade e inclusão são vetores que estão transformando o mercado e o futuro das organizações. Não são uma pauta optativa para empresas e organizações, mas sim uma mudança necessária e imperativa. Fazemos essa discussão já há algum tempo. Não é uma conversa nova. Inicialmente, houve um grande apontamento sobre a coisa certa a se fazer, pois é fato, é um dado, que diversidade traz inovação. A nossa sociedade é plural, é diversa, e, diante dessa constatação, existe um questionamento de o porquê isso não se reflete nas organizações e, principalmente, nos espaços de poder. Esse questionamento ganhou várias nuances, com resistências de algumas empresas que perpetuam um modelo de gestão padronizado na homogeneidade do processo de produção e do perfil das pessoas.

Em meados de 2018, a consultoria McKinsey começou a publicar uma série de estudos mostrando que as empresas – a partir da reflexão de aumentarem a diversidade – começaram a ter melhores resultados financeiros. E os números são vultuosos. A equidade de gênero, por exemplo, aumenta a produtividade em 21%. A equidade racial é ainda mais potente e aumenta a produtividade em 35%. Desde o lançamento dessa série de estudos, o assunto ganhou esse olhar mais quantitativo, que é o que a gestão acaba priorizando em detrimento de outras métricas qualitativas, que também deveriam ser mais observadas, pois trazem resultados igualmente de sucesso. 

Quais são as avaliações qualitativas?

Grazi Mendes – Esse movimento nos faz entender que a sociedade tem um desejo maior de se ver representada nas organizações. De ver iniciativas concretas das empresas em prol de um mundo que respeite e valorize a potência da nossa diversidade. Estamos falando de funcionários, de talentos dentro de uma geração Z, principalmente, que exigem isso. Estamos falando também de uma sociedade que, no geral, está mais antenada e vem discutindo a necessidade de se ver representada nas empresas e em toda a cadeia produtiva.

E tem a perspectiva de consumo também…

Grazi Mendes – Com certeza. Cerca de 72% do consumo brasileiro vem de grupos minorizados, como LGBTQIA+, PCDs, negros e mulheres. Sete em cada 10 brasileiros consideram que marcas e empresas devem apoiar temas sobre diversidade e oito em cada dez avaliam ser importante o apoio à diversidade entre seus funcionários. As pessoas querem consumir produtos com os quais elas se identificam mais e, em uma sociedade tão diversa quanto a brasileira – que tem a maior quantidade de tons de pele do mundo – isso passa a ter uma pressão cada vez maior. Então, aviso às marcas que, seja por convicção ou seja por pressão, elas terão de trabalhar com ambientes mais inclusivos. Esta é a demanda do nosso tempo e as organizações que querem ser relevantes precisam ter esse olhar. Voltando à sua primeira pergunta, todo este cenário explica por que a diversidade e a inovação estão intimamente ligadas. 

Mas o conceito de inovação é amplo, e nem sempre consensual…

Grazi Mendes – Eu não acredito que invenção seja, naturalmente, inovação. A inovação tem de construir valor e ter relevância. Também entendo que a inovação não está relacionada somente às tecnologias digitais, mas elas são sim grandes aceleradoras para a construção de possibilidades. Entendo que a inovação tem uma conexão muito direta com o que é relevante, com a construção de coisas novas, escaláveis e que possam nos ajudar a criar soluções melhores. Ela também está ligada à melhoria do que já existe ou à meta de fazer com que algo bom não deixe de existir. 

Em uma entrevista para a Forbes, você fala da paixão pela literatura e da importância disso para a construção da sua trajetória, que está intimamente ligada às causas raciais. Que escritores te inspiram e por quê?

Grazi Mendes – A minha irmã que me alfabetizou, ou melhor, que me estimulou ao mundo da alfabetização. E fez isso através da literatura. Não pelos autores em si, mas pelas ideias que eles conectam. Me identifico com Carolina Maria de Jesus e com Conceição Evaristo, duas autoras negras que trazem a escrevivência, trazem relatos que fazem com que a gente se identifique rapidamente nos textos. Elas pegam vivências periféricas, de vidas negras coletivas, com muita propriedade e são grandes intérpretes do Brasil. Eu avalio que isso as diferencia, pois, no mainstream, onde ficam os autores consagrados, muitas vezes isto não existe. Autores do cotidiano, ao mesmo tempo que parecem brutos, dão um toque de esperança teimosa para que o povo marginalizado acredite em novas histórias e em novas possibilidades. O mais importante desses relatos é que eles nos colocam como humanos com suas potências e fragilidades, tirando a pixa de que temos de ser heróicos para alcançar a excelência sempre. 

Na literatura, alguns escritores e/ou ativistas foram postos em dualidade quanto ao modo de lidar com a questão racial. Lima Barreto ou João do Rio, Martin Luther King ou Malcom-X… Como você avalia isso?

Grazi Mendes – A conexão com as autoras negras as quais me referi trazem um lugar de diálogo, de uma ponte para novos caminhos. Primeiramente, não vejo exatamente que há uma dualidade, a ponto de se seguir ao Dr. King ou ao Malcon-X, ou outros comparativos. Esses dois, aliás, tiveram visões que se encontram em muitos pontos, apesar das divergências. De modo geral, posso dizer que sou a favor de uma construção coletiva, como procurou o Dr. King. Entendo que a equidade racial precisa ser construída a partir da nossa capacidade de coexistir e o caminho é corrigir a hierarquização de diferenças que existem na sociedade. Mas também reconheço que há outras formas – igualmente legítimas – de buscar um lugar melhor ao nosso povo.

As organizações, como você pontuou, estão cada vez mais pressionadas a aderir às equidades e isso é importante para corrigir a hierarquização da diferença. Esse movimento também não se torna perigoso, ao ponto de que organizações passem a maquiar ações de diversidade em busca de falsa reputação?

Grazi Mendes – Realmente, muitas iniciativas partem de uma premissa equivocada de que podem utilizar um discurso estetizado que, na prática, não se concretiza. Contra isso, o remédio é uma sociedade atenta. E isso está acontecendo. Hoje, vejo que a sociedade tem demonstrado pouca tolerância com a incoerência e, se a organização tem um discurso de diversidade, mas não o manifesta nas suas práticas, na composição dos times e das lideranças, ela vai enfrentar crises. É a regra do walk the talk: seja quem, de fato, você diz que é. Isso é muito simples em conceito e premissa, mas é profundamente complexo porque exige intencionalidade. Não é uma campanha, que começa, dá uma pílula de melhoria e acaba e pronto. É um compromisso duradouro e, enquanto mais se avança nele, maiores ficam os desafios com tensões culturais internas e outros desconfortos.

Então a equidade precisa ser desconfortável para as organizações?

Grazi Mendes – Exatamente. As empresas que não querem desconforto não irão avançar. Aliás, não existe avanço sem desconforto. Promover a equidade racial, de gênero e de outros grupos sub-representados exige capacidade de abraçar os tensionamentos que se impõe e enfrentá-los. E o bom é que parte da sociedade entende que já passou da hora de ter as conversas desconfortáveis em prol da pluralidade.

Voltando à cultura da inovação, a sua história é semelhante à de muitas pessoas negras que conseguiram se intelectualizar. Como fazer com que isso não se torne uma romantização errada da realidade periférica?

Grazi Mendes – Cada história é única, singular. Cada pessoa tem a sua própria história, mas nós encontramos, de fato, muitas similaridades nas vivências coletivas da população negra do Brasil. Não dá para romantizar a favela ou as condições que estão impostas nesse processo de marginalização. Mas é preciso deixar nítido que este país se movimenta a partir das periferias. Para poder fazer uma reunião, uma palestra ou algo do tipo, desde as 4h da manhã teve um monte de gente das periferias trabalhando para acender as luzes da cidade, nas padarias, na limpeza, nos transportes. Essas pessoas são quem, de fato, fazem o país se movimentar e, ao mesmo tempo, são elas que estão sem acessos e sem direitos. Portanto, não é sobre ser a primeira, a única ou uma das poucas a ocupar posições e ter acessos. Mas é sobre como podemos abrir caminhos para que mais pessoas tenham oportunidades que as permitam fazer escolhas e não tenham seu horizonte de sonhos reduzido. 

Por “acessos” você inclui a educação de qualidade?

Grazi Mendes – Principalmente. Sou co-fundadora de um cursinho popular no Morro do Papagaio, em Belo Horizonte. Eu me conecto muito com o poder da educação e lá só tem escola até o Fundamental II. Então, quem quer estudar, precisa sair da favela, se deslocar não sei quanto tempo e fazer tudo isso ao dissabor da insegurança. A insegurança, aliás, é um grande limitador para essas pessoas, pois, mesmo a segurança oficial (polícia) que está na favela, não está lá para proteger o morador, mas sim para impor violência, muitas vezes. Novamente, não podemos romantizar e estigmatizar a favela, mas esse é sim um local de muita potência criativa, que se modela a partir das condições difíceis ali colocadas, fazendo com que as pessoas desenvolvam habilidades além das listadas em um currículo formal. Enxergo que isso é muito valioso e que nós desperdiçamos essa potência criativa por meras formalidades.

Pode exemplificar?

Grazi Mendes – Posso me colocar um pouco nesse lugar: o meu primeiro estágio de trabalho foi em uma empresa internacional e eu me colocava na posição de falta [de que faltava algo]. Afinal, eu não estudei nos melhores colégios, acordava às 4h30 para ir ao estágio, enquanto os meus colegas acordavam meia hora antes de bater o ponto. Eu andava um tanto até a faculdade e depois um tantão até em casa. Chegava tarde e, no dia seguinte, às 4h30 começava o novo ciclo. Mas logo no início do estágio eu ganhei um prêmio de proatividade e isso mudou a valência (de negativa para positiva) de como eu me percebia. Questionei o meu líder a respeito, já que, na minha cabeça, eu estava no lugar de falta. E ele foi me dando exemplos de coisas que aconteceram no dia a dia e eu fui desembolando, colaborando com áreas distintas e promovendo soluções diferentes. Então eu descobri que não havia aprendido aquelas coisas na faculdade de administração. Entendi que a “seviração”, que o meu líder chamou de proatividade, era, na verdade, uma característica que eu já tinha desenvolvido há muito tempo e que, mais tarde, entenderia o quão valiosa ela é.

A “seviração” é então um legado e uma potência da periferia? 

Grazi Mendes – Totalmente, e ela está intimamente ligada à colaboração. Aprendi sobre colaboração com o arranjo que mulheres empregadas domésticas, como a minha mãe, faziam para sobreviver e criar os seus filhos. Elas se revezam para cuidar dos filhos comunitariamente, enquanto o trabalho delas era cuidar dos filhos dos outros muitas vezes. Nesses dias, no Morro do Papagaio, teve prova do Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos). Você precisava ver a movimentação das mulheres para colaborar, negociando os cuidados com os seus filhos. Essas mulheres são vanguardistas, se pararmos para analisar que essa cultura do cuidado por colaboração está sendo falada somente hoje nas organizações.

Por isso que, sem romantizar, é muito importante ver organizações como a Fundação Dom Cabral junto à Expo Favela olhando para as periferias por essa ótica de potência econômica e não apenas da falta de recursos, que é latente. E isso tem a ver com o futuro do Brasil, que será tão ou não brilhante quanto a nossa capacidade de investir e incentivar a potência periférica, que é o que temos de melhor.

Você domina dois aspectos essenciais para o avanço do ESG: diversidade e digitalização. O quanto eles estão interligados e contribuem para a construção de uma sociedade melhor?

Grazi Mendes – Não à toa, hoje eu sou diretora de diversidade e inclusão em uma multinacional de tecnologia. O progresso traz uma série de oportunidades e, ao mesmo tempo, uma série de desafios para quem está fora do seu contexto. E é aí que mora o perigo. O Emicida tem uma música que fala que precisamos agir “para que o amanhã não seja só um hoje com um novo nome”. E é bem isso. 

As novas tecnologias de hoje têm reproduzido padrões do século passado. Nunca tivemos tanta tecnologia disponível e ao mesmo tempo o aumento da desigualdade social, junto ainda a um risco climático para o qual não existe plano B. Nós precisamos encarar isso coletivamente. Toda urgência tem mesmo de ser colocada para as questões climáticas, pois é a preservação da nossa existência. Mas isso exige que a maior parte (ou todas) das pessoas possa ter uma vida digna e habilitada para cuidar do nosso planeta. Às novas tecnologias, cabe o papel de servir para melhorar a condição social e humana. Progresso significa melhoria das condições de vida e por isso nem todo avanço pode ser considerado progresso. Uma discussão de tecnologia do futuro deve sempre questionar a quem essas tecnologias beneficiarão e quais serão os padrões que ela irá reproduzir. Isto irá depender também de quem está desenvolvendo essa tecnologia.

Como foi a sua formação acadêmica para construir a visão que nos apresentou aqui?

Grazi Mendes – Eu sou graduada em administração, com algumas especializações em marketing digital, inovação e neurociência e comportamento. Agora estou mestrando em design de futuros, em uma perspectiva de mulheres negras e tecnologia. Trata-se de um design para as margens, criando futuros tecnológicos pelo prisma da base da pirâmide social.

Este conceito de design para as margens vem do urbanista César McDowell, diretor associado MIT Center for Constructive Communication, e discute que o mundo é projetado e desenvolvido pensando majoritariamente em um perfil de pessoas. Aos que não se enquadram nisso, os sistemas são falhos e os obriga a conviver com essas falhas. Quando se parte da ideia de iniciar projetos já a partir das margens, por outro lado, se garante que tanto esse centro – para o qual as coisas sempre foram projetadas – quanto as margens, fiquem cobertas. [“É como uma barraca, que quando montada a partir da ponta, irá cobrir tanto aquele que está lá quanto quem está no meio dela”, resumiu McDowell em uma palestra sobre o tema].




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