Somos bons em “coisificar” na gestão empresarial – eventos e fenômenos como disrupção, inovação e transformação são “coisas” que precisam ser definidas, descritas. No esforço de definir tudo, abrimos mão do todo para ficarmos com a irrelevância de uma definição que nos ajude a entender a complexidade.

Em um mundo hiperconectado, estressado e líquido, o pior que podemos fazer é seguir receitas de bolo – que são ótimas quando conhecemos o problema mas são péssimas para enfrentar imprevisibilidade e volatilidade. Um capitão em meio à tempestade faz de tudo para salvar sua tripulação e seu navio –  menos ler o manual. Ele improvisa, arrisca, cria, decide em frações de segundo, sabendo que a longa jornada continua após a tempestade. A necessidade instantânea de sobrevivência se mistura à visão dos próximos dias, semanas e meses. Para navegar em águas calmas e revoltas, é preciso ambidestria no pensamento.

Transformar-se é um imperativo para sobreviver – já transformar-se continuamente é necessário para assegurar longevidade, para criar negócios sustentáveis. Ver o hoje e preparar-se para o amanhã ao mesmo tempo. Este artigo busca trazer reflexões para líderes empresariais que o(a)s ajudem em sua jornada de transformação contínua. Para trilharmos essa jornada de transformação em um mundo líquido, precisamos de mais habilidades e de um novo modelo mental.

Mas o que é esse mundo líquido (1) ? Ele impõe três condições para formar uma nova realidade. A velocidade – o rápido é obrigado a ser instantâneo. A permeabilidade – o intransponível torna-se permeável, as barreiras são contornáveis, tudo flui através. A mutabilidade – o permanente cede espaço ao mutável, ao ato contínuo de adaptação e a plasticidade passa a ser vital para competir.

Três determinantes para navegar no mundo líquido

1. Sobre o que queremos e quem somos

Os empreendedores constroem suas empresas sobre os alicerces de um “sonho”, de um (1) propósito. Ele costuma ser amplo, abrangente e nem sempre é explícito – “deixar um mundo melhor do que recebeu”, “reduzir a desigualdade e aumentar a inclusão” por vezes estão incutidos no DNA empresarial mas passam despercebidos na estratégia e nas ações da organização. Desse propósito surge uma (2) missão – como queremos alcançar o sonho, e quais caminhos optamos por trilhar. A (3) visão emerge como a missão em movimento, na fatia do tempo, e delineia as ambições que norteiam nossos esforços no dia-a-dia e nos transportam mentalmente aonde queremos chegar. É fundamental que haja harmonia e coerência entre os três (Figura 1) para que as empresas obtenham o impacto positivo que querem ter.

Em nossa jornada de transformação contínua, somente o propósito não é alvo de mudança (não costuma ser!) – missão e visão se moldam e se adaptam para engajar a organização em novas empreitadas visando alcançar o sonho de outras maneiras.

(Fonte: Yves Moyen, FDC)

Por que é relevante? Assegure-se de revisitar seu propósito, sua missão e visão antes de deixar o porto e enfrentar a travessia. Eles dão contexto e sentido para a iniciar e continuar a jornada, e devem ter aderência com a realidade e ter significado para energizar seu time!

2. Sobre o potencial e o ambiente para transformar-se

Em sua maioria, as organizações não conseguem ter clareza de “por que” não conseguem transformar-se com a intensidade e velocidade necessárias. É como se pairasse uma neblina espessa acima, impedindo que os líderes enxerguem as causas raiz, os problemas de fundo. Elas superestimam ou subestimam seu potencial de transformação – ou seja, falta auto-conhecimento. Assim, é preciso avaliar quatro elementos chave (figura 2) para entender se a empresa tem o que é preciso para transformar-se: (1) o potencial de aprendizado mensura como a organização torna-se mais inteligente. (2) a alavancagem cultural identifica como comportamentos e atitudes tracionam ou não a mudança. (3) a agilidade organizacional indica a habilidade de focar, adaptar e acelerar. Por fim, (4) a energia organizacional mensura o combustível para a jornada de transformação.

Como o potencial para transformação é mensurado (Fonte: Yves Moyen, FDC)

Mas não basta ter potencial para transformar-se – é preciso que o ambiente organizacional seja favorável e que ajude que as mudanças ocorram. A neurociência explica como reagimos a ameaças e a recompensas. Nosso cérebro reage instintivamente a ambos e sem que percebamos, moldam nossos comportamentos e atitudes na vida e também no ambiente organizacional (figura 3). Quanto mais recompensas nossos cérebros percebem e codificam, mais positivo tende a ser o ambiente para a transformação. Quanto mais ameaças são percebidas pelos indivíduos, maiores serão as barreiras e menos positivo o ambiente para a transformação – será mais difícil engajar e motivar pessoas que estão “congeladas” em meio a medos, receios e incertezas.

Como o ambiente para transformação é moldado (Fonte: Yves Moyen,FDC)

3. Sobre a estratégia líquida

Um mundo líquido exige plasticidade e adaptação rápida das empresas. O ciclo de planejamento estratégico tradicional não dá conta da velocidade e intensidade das mudanças. O mindset do estrategista líquido funciona com ambidestria – sabendo os momentos de acelerar e recuar, de jogar grande e jogar pequeno, de atacar e defender o futuro, de otimizar e crescer. Ele sabe também que é preciso revitalizar o core business com desprendimento, tornando-o mais leve e mais ágil e gerando caixa para inovar.

O estrategista líquido gera insights sistematicamente, tornando o negócio mais inteligente a cada dia. Ele faz uso do pensamento não-linear, criando impactos desproporcionais em receitas, em custos e em tempos. Para criar valor novo e defender seu negócio, o estrategista líquido arquiteta e insere sua empresa em ecossistemas de negócios. Ele está sintonizado com as megatendências – sociedade, tecnologia e concorrência – em nível global, observando-as e estimando seu impacto sobre o negócio. Ele cria e opera seu radar de “disrupção” do negócio.

O estrategista líquido não receia auto-ruptura – ao contrário, ele entende que ela pode ser a oportunidade para criar crescimento exponencial – ele não receia enfrentar dogmas, crenças limitantes, premissas tóxicas e o “grude” (2)  nas organizações (vieses cognitivos que geram comportamentos de autossabotagem, autopreservação e auto-engano), e desempenha o papel corajoso de iconoclasta organizacional. Mas o estrategista líquido não é um líder solitário – estratégia em um mundo líquido exige multiprotagonismo, cabeças diversas que reúnam renascentistas e racionalistas.

Por que é relevante? As empresas que souberem rapidamente ajustar e redefinir rumos serão mais ágeis em suas transformações e terão vantagem significativa no mundo líquido.

Mensagem Final

Transformar é para poucos – o futuro não é para todos. Não há tempo para ler manuais. Transformação deve ser um estado mental constante, entendendo que no mundo líquido, os negócios precisam ser mais velozes (de rápido para instantâneo), mais fluidos (sem fricção, sem barreiras) e mais moldáveis (adaptação e plasticidade). A mudança de ontem é o “normal” de hoje e é o “insuficiente” de amanhã – portanto, o melhor investimento das empresas é construir e fortalecer agora suas “fábricas” de transformação. E então, sua empresa está preparada para a jornada?

  1. Inspirado na definição de modernidade líquida de Zigmunt Bauman, sociólogo polonês (1925-2017)
  2. Conceito de Organizações Grudentas, do Prof. Yves Moyen