A guerra da Rússia contra a Ucrânia resultará em crise financeira global? Essa é uma das questões que têm assolado grande parte do setor financeiro mundial e, segundo o professor Carlos Alberto Primo Braga, da Fundação Dom Cabral, a resposta “depende de quanto tempo a guerra durar”.
Braga conta como a ameaça acerca do fornecimento de derivados de petróleo, principalmente de gás natural da Rússia para a Europa, está mexendo com o mercado mundial de commodities e, consequentemente, com as economias. Ele também explica como o congelamento das reservas financeiras internacionais da Rússia limita o seu poder de reação econômica frente às demais sanções impostas pelo ocidente contra a guerra, e que contornos – inclusive militares – isso pode tomar.
Acompanhe esses pontos nesta entrevista exclusiva ao Seja Relevante, onde o professor também comenta sobre a situação do Brasil e outros impactos econômicos da guerra na Ucrânia.
Como você avalia o impacto das sanções econômicas impostas pelo Ocidente à Rússia até o momento?
Carlos Primo Braga – Avalio que as sanções são impactantes. Existe uma tradição de que sanções econômicas não causam impactos significativos. Isso porque costumam haver “vazamentos”, a menos que exista consenso entre todos os países aliados. É o que mostram os exemplos do Irã, da Venezuela e de Cuba, cujas sanções tiveram impacto, obviamente, mas não de uma magnitude esperada, porque há países que não as aplicam de forma consistente ou se recusam a impor as sanções. No caso da crise da Ucrânia com a Rússia, desde a tomada da Criméia, em 2014, quando os russos também passaram a dar apoio aos rebeldes em Donbass, os EUA impuseram sanções, mas de pouco impacto. Mas desta vez é diferente.
Quão diferente?
Carlos Primo Braga – Com sanções que vão de medidas contra oligarcas e políticos russos, restrições ao comércio internacional e de acesso ao sistema SWIFT (pelo qual cerca de 11 mil instituições financeiras se comunicam para facilitar transações financeiras) e embargo ao acesso de reservas internacionais no exterior, os impactos têm sido significativos para a Rússia. Por outro lado, os países ocidentais tiveram cuidado inicialmente em relação à energia, principalmente no que tange às exportações de gás natural e petróleo, pois a Europa depende muito da energia russa: em média, 40% do consumo de gás natural da Europa vem da Rússia. O banco da Gaspron, que é a grande empresa de energia que exporta para a Europa, por exemplo, não foi incluído inicialmente no embargo à participação no SWIFT, com a ideia de se manter a possibilidade de comunicações associadas com a compra de energia pela Europa, de forma a evitar disrupções no fornecimento. Há estimativas de que, se todo gás natural da Rússia for impedido de ser exportado para a Europa, o PIB europeu poderia sofrer um choque negativo de cerca de 3%, o que poderia colocar a região, e talvez o mundo, em recessão.
A Rússia estava preparada para essas sanções?
Carlos Primo Braga – Certamente Putin não esperava sanções tão significativas, mas já vinha tentando se preparar para eventuais sanções com o objetivo de blindar a economia russa. As reservas internacionais da maioria dos países são tipicamente alocadas em dólar e títulos americanos. Posições em euro, libra esterlina, franco suíço, iene, Special Drawing Rights (SDRs) e ouro são também comuns. A Rússia tem hoje o equivalente a US$ 630 bilhões em reservas, refletindo o superavit tradicional de suas contas correntes gerado principalmente pelas exportações de energia. Cerca de metade dessas reservas se encontra em bancos centrais e instituições multilaterais (FMI, BIS…) fora da Rússia. A Rússia já vinha buscando aumentar a diversificação de suas reservas nos últimos anos. Aumentou suas alocações em ouro e, principalmente, na moeda chinesa, que hoje já representa cerca de 14% das reservas internacionais russas. Mas isso ainda não é o suficiente para blindar a economia russa de modo que os valores congelados pelas sanções impostas têm causado problemas na medida em que elas limitam a capacidade do Banco Central Russo em intervir no mercado cambial para proteger a sua moeda.
É possível prever o tamanho do impacto que as sanções provocarão a médio e longo prazos?
Carlos Primo Braga – Tudo dependerá da duração da Guerra. Mas há estimativas de que o impacto pode ser superior a 10% no PIB russo, o que reforça a minha afirmação anterior de que as sanções são significativas.
A Rússia tem suas exportações ancoradas no setor energético, tornando grande parte da Europa dependente do gás fornecido por ela. Esta crise, conforme avancem as sanções sobre o setor energético, pode acelerar a transição energética no ocidente, como resposta aos impactos econômicos da guerra?
Carlos Primo Braga – Pode, mas é uma faca de dois gumes. Neste momento em que falamos, o barril de petróleo Brent já atingiu momentaneamente mais de US$ 125 dólares, o que representa um aumento de mais de 50% em relação ao preço praticado no fim do ano passado (cerca de US$ 80 dólares). Esse aumento impacta o mundo todo e pode – se continuar dessa forma – ocasionar destruição de demanda, fazendo com que as pessoas reduzam a utilização de automóveis, e de energia de uma maneira geral. Isso, obviamente, deve acelerar os investimentos em energias renováveis, mas pode ser algo momentâneo, retroagindo com o fim da guerra.
No “outro gume”, devemos ver países retomando esforços na produção de combustíveis fósseis para atender a demanda de curto prazo. Essa segunda situação pode ser boa a médio prazo para a Petrobrás, dada a nossa reserva do pré-sal. A única certeza no momento é que teremos um período caracterizado por grande volatilidade nos preços de petróleo e gás natural.
E em termos militares, como o conflito pode ser direcionado?
Carlos Primo Braga – Sobre a intervenção dos países ocidentais no conflito, já está colocada a predisposição em fornecer armas para a Ucrânia, algo que não ocorreu em 2014, na anexação da Criméia. Naquela época, a ajuda foi com armas defensivas, como capacetes e coletes anti-balas. Agora são armas de uma aplicação mais ampla (por exemplo, mísseis anti-tanques) e a Rússia não está gostando disso, obviamente. Mas esse não é um fato que deve mudar o resultado do confronto, que é em princípio um “Davi versus Golias”. Todos sabem que a Rússia deve vencer a guerra no campo militar, embora “Golias” possa ser surpreendido. Agora, quanto tempo isso vai levar e quais serão as consequências é o grande ponto de interrogação. Talvez, Putin pensasse que as forças ucranianas simplesmente se renderiam e a população receberia as tropas russas com “flores.” Até agora tem sido o oposto, e não só estamos vendo um exercício de liderança por parte do Presidente Zelensky, que está sabendo como usar as redes sociais para mandar mensagens impactantes, mas também a população ucraniana tem se demonstrado disposta a lutar de forma heroica. A questão, portanto, é até que ponto, à medida que as armas do ocidente começarem a ser utilizadas de forma significativa no campo de operações, a Rússia resolverá escalar o conflito? É uma pergunta em aberto, mas eu não sei se vai se transformar em realidade. Porém, está claro que a perspectiva original de Putin, de que a guerra seria um “passeio no parque” e de que a intervenção alcançaria seus objetivos em dias, não se confirmou.
Isso faz diferença no aspecto militar?
Carlos Primo Braga – Sim. A moral das tropas e da população é muito importante para o sucesso de uma operação militar. Os militares profissionais podem ser menos afetados, mas certamente entre os conscritos russos, que foram para a guerra com a ilusão de que era um treinamento e estão vendo colegas morrendo, o impacto é significativo. Esse aspecto da moral também pode ser afetado pelo estrangulamento da economia russa, algo que vai levar tempo, mas que já está começando: o Sberbank (o maior banco russo), que tinha ações negociadas em Londres, por exemplo, viu suas ações desvalorizarem em cerca de 95% na primeira semana de março.
Quais são as margens de manobra da Rússia na economia?
Carlos Primo Braga – Há algumas, dependendo da duração do confronto e das sanções. O Banco Central da Rússia aumentou a taxa de juros de 9,5% para 20%, como forma de tentar acalmar o mercado após o início da guerra, por exemplo. Mas isso tem efeitos colaterais, como a redução de investimentos, de tomadas de empréstimos e, principalmente, do consumo, já que os cidadãos sentirão o peso dos juros no bolso. Esse último aspecto pode impactar não só o ambiente econômico, como também o político, com queda na popularidade de Putin. Contra isso, o governo assumiu o controle das mídias tradicionais e, portanto, a história contada lá é bem diferente da que vemos no Ocidente.
Essa pressão econômica pode fazer a Rússia escalar o conflito militarmente?
Carlos Primo Braga – Não acredito. E já adiantando, se você perguntar se a Otan vai entrar na guerra diretamente, também acho que não. No caso da Rússia, o Putin já deu as ordens para utilizar a estratégia militar tradicional da Rússia, baseada em terror e destruição de cidades. É o que está acontecendo agora e o que provavelmente acontecerá em Kiev e em outras cidades até o fim da guerra. Ao fazer isso, os russos também estão também tentando afetar a moral da população ucraniana e, com isso, limitar a resistência sem precisar escalar os esforços militares, por exemplo, através da utilização de armas nucleares táticas ou armas químicas.
Outros vieses, como o descontrole do preço das commodities, podem modificar o cenário?
Carlos Primo Braga – O impacto no preço de commodities está sendo significativo, e afetando não apenas o preço de energia. Há uma correlação elevada – não necessariamente uma conexão causal – entre aumentos significativos do preço de energia e recessões globais no passado. No caso de mercados financeiros, também sabemos que choques geopolíticos (como o ataque a Pearl Harbor, o ataque terrorista de 11 de setembro ou a anexação da Criméia) tipicamente não têm impactos significativos de longo-prazo, muito embora possam afetar as bolsas de valores no curto-prazo. Existem, porém, exceções a essa regra. O mais emblemático foi a guerra do Yom Kippur (1973), de Israel contra países árabes, e que teve relação direta com a alta de mais de 300% no preço do petróleo, levando o mundo a uma recessão.
Na crise atual, o perigo, além da crise humanitária, está exatamente nas suas externalidades para os preços de commodities. O preço do trigo, que a Rússia e a Ucrânia são grandes produtores, por exemplo, disparou. O mesmo também está ocorrendo com o preço de fertilizantes agrícolas, questão importante para o Brasil, que é grande importador. Novamente, o quanto isso impactará a economia mundial, vai depender da duração da guerra e dos novos contornos que ela pode tomar.
Quais são os contornos à vista?
Carlos Primo Braga – São vários: o Banco Central da Rússia, por exemplo, anunciou que títulos da dívida pública serão pagos em moeda local (rublos). Teoricamente, isso pode caracterizar um default, impactando companhias europeias que têm posições significativas de investimentos na Rússia. Também já vimos companhias globais paralisando as atividades na Rússia, caso da indústria automobilística, mas também de uma ampla gama de corporações (mais de 350 empresas até esse momento). E ocorrem também impactos indiretos. Devemos ver o Federal Reserve System (Fed, banco central americano) aumentando a taxa de juros de referência, além de reduzir a compra de títulos em mercados de longo prazo nos próximos meses. A inflação dos Estados Unidos já está em níveis elevados (cerca de 7,9% nos últimos 12 meses), de forma que a expectativa generalizada é de que o Fed vai começar a apertar os “parafusos” da política monetária e o impacto do aumento dos preços das commodities contribui para essa expectativa. Por outro lado, a eventual desaceleração da economia global sugere que o aperto monetário ocorrerá a uma velocidade menor do que ocorreria se não fosse a crise geopolítica. O Banco Central Europeu provavelmente também postergará medidas de aperto monetário como tentativa de administrar as externalidades financeiras da crise.
Há desdobramentos que afetam o Brasil diretamente?
Carlos Primo Braga – Sim. Vimos que o Banco Central já vinha aumentando a taxa de juros (a Selic) para conter a inflação, que já ultrapassou os dois dígitos, e, com a guerra, isso deve continuar ou até mesmo ser intensificado. Entendo que o Bacen está fazendo a coisa certa, mas isso tem implicações na atividade econômica, o que levanta dúvidas sobre a velocidade com que esses aumentos serão implementados. As apostas são de que haverá continuidade, com a Selic devendo passar dos 12% até o fim do ano. Também vamos observar no curto prazo mais aumentos no preço dos combustíveis, assim como no trigo (e pão) e commodities em geral. Esse choque inflacionário aumenta os desafios para a política monetária, muito embora a médio prazo a melhoria nos nossos termos de troca – já que somos grandes exportadores de minério de ferro e soja – seja positiva. De uma maneira geral, porém, veremos o Banco Central tendo de “apertar o freio” por conta da inflação.