Nessa entrevista, o professor Paulo Vicente dos Santos Alves, da FDC, explica a crise na Ucrânia, e como ela faz parte do fim de um ciclo de tecnologia e que acontece no meio de um ciclo histórico de formação de uma nova potência hegemônica. Paulo Vicente possui doutorado em Administração de Empresas e mestrado em Administração Pública, ambos pela FGV. É formado em Engenharia Mecânica pelo IME e foi subsecretário de Planejamento da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão do Rio de Janeiro (Seplag-RJ) e capitão do Exército Brasileiro de 1990 a 2002.
Antes de comentar a crise atual na Ucrânia, poderia nos falar de sua metodologia de análise?
Paulo Vicente – Ela combina vários métodos, mas o modelo fundamental é baseado em duas teorias: a dos ciclos hegemônicos e a dos ciclos tecnológicos, essa última desenvolvida por Nikolai Kondratiev. No caso dos ciclos hegemônicos, o que se observa nos últimos 500 anos é como o poder político mantém o poder econômico (e vice-versa) e como isso cria potências hegemônicas, que são trocadas a cada 100 – 150 anos, sendo a atual os Estados Unidos. A historiografia que trata dos ciclos tecnológicos aborda como eles têm evoluído nos últimos 250 anos por meio de ciclos ou revoluções em períodos de 50 a 60 anos cada. O que eu fiz foi pegar as duas historiografias e fazer uma extrapolação, ou seja, como seria o cenário futuro com base na combinação das duas análises.
E o que podemos esperar dessa transição?
Paulo Vicente – Nesse caso, a globalização continuará e vai haver uma nova revolução tecnológica. Mas são hipóteses, tendências, probabilidades, que ainda assim podem estar erradas. O que o modelo extrapolado mostra é que estamos vivendo uma década de transição, no final de um quinto ciclo tecnológico, ambiente que sempre gera uma série de conflitos, o que força o capitalismo a se reinventar, nesse momento, a partir da tecnologia. O que esse cenário trouxe mais fortemente foi uma guerra fria entre Estados Unidos e Rússia e entre Estados Unidos e China. É um final de ciclo tecnológico, em que tempos desesperados requerem medidas desesperadas, nos quais as pessoas investem em soluções que nunca tinham tentado. E quando se investe centenas de bilhões de dólares em tecnologias que vão gerar mais 50 anos de prosperidade.
E em que fase está a potência hegemônica atual?
Paulo Vicente – No meio do caminho. Ela começa a se estabelecer com esse papel em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial e matematicamente ingressa num ciclo de 100 a 140 anos, com a média de 120. Espera-se que o fim desse ciclo aconteça por volta de 2065, quando iniciaríamos outra fase de transição para uma nova potência hegemônica. Não dá para estimar quem seria essa próxima potência hegemônica, mas tenho cinco candidatos.
Quem seriam?
Paulo Vicente – Primeiro os “Estados Unidos da Europa”, ou seja, uma Europa Unificada incluindo Reino Unido e parte da Rússia, nos próximos 40 anos. O segundo candidato seria “Los Estados Unidos”, uma potência que unificaria os Estados Unidos à América Latina, com a diferença que seria uma potência latinizada de dentro. O terceiro candidato seria a China e suas “colônias” na África, processo em andamento, visto que a China não para de crescer e projeta a busca de recursos no continente africano. A quarta potência provável é a Índia e suas “colônias” também na África. Assim como a China, a Índia tem problemas de falta de recursos e precisa buscá-los fora do seu território. Estima-se que a China atinja o pico de seu modelo de crescimento nessa década e a Índia tem margem para ultrapassar os chineses como grande motor de crescimento do mundo. O quinto e último candidato é o Brasil, fundido à América do Sul. Estamos numa marcha para o Pacífico, como aconteceu com os Estados Unidos no século XIX, e a expansão da fronteira agrícola vai nos levando para dentro dos vizinhos. Isso vai levar à integração econômica e demográfica da região, mas não necessariamente à uma integração política.
Você aposta em um desses cinco candidatos em potencial?
Paulo Vicente – É difícil afirmar qual deles tem condições de ser a potência hegemônica, mas, em ciência, o mais divertido é o debate sobre o tema. Os cinco movimentos estão acontecendo ao mesmo tempo. Há uma corrida colonial por recursos, puxada por países asiáticos como China e Índia, e há a integração econômica e demográfica e, em alguns casos, até políticas, mas existem também relações contraditórias entre tamanho e flexibilidade. É bom fazer uma União Europeia porque aumenta o poder de barganha dos países. Há grandes vantagens em se fazer a integração como a do Mercosul ou como fizeram os Estados Unidos ao longo de sua história. A dificuldade é como manter os interesses locais. Os Estados Unidos fizeram isso bem, com a federalização dos 50 estados, onde cada um tem a sua constituição. É preciso ter a vantagem da grande escala, sem tirar a flexibilidade.
Nessas mudanças de busca de recursos na África por parte da China, o Brasil não perde espaço?
Paulo Vicente – O que a China está fazendo nada mais é do que a diversificação de fornecedores. Ela não quer depender somente da América do Sul, quer depender menos da região que fica distante do ponto logístico e militar. Não dá pra comparar com o domínio que ela exerce, por exemplo, no Mar do Sul da China. O processo de expansão para busca de recursos tem uma lógica. Primeiro, começa apenas com a importação. Se a dependência aumenta, passa-se para o investimento, com estabelecimento de empresas, compra de terras locais, portos. A fase seguinte envolve a ativação de bases militares, de forma a proteger as rotas e defender os interesses militares. E, por fim, estabelece-se o monopólio por meio de protetorados ou colônias.
Guerras, nesse caso, estão no roteiro?
Paulo Vicente – A China tem um problema grave porque entre 60% e 80% de tudo que entra e sai do país passa pelo Estreito de Malacca, que fica entre a península da Malásia e a ilha de Sumatra. Na ponta malaia, por exemplo, está Cingapura. O estreito é uma veia aorta exposta: não precisa atacar o território chinês para prejudicar a China. Lacra-se navalmente o país e não entra comida. Foi o mesmo paradigma do Japão antes da Segunda Guerra Mundial. Os japoneses atacaram Pearl Harbor para enfraquecer a presença americana na região, tomaram o Estreito de Malacca e parte dos países da região, para ter acesso a comida e ao petróleo. No processo oposto, os norte-americanos enfraqueceram a presença japonesa, ao ocupar as Filipinas, colocando uma cunha e impedindo a chegada de comida ao Japão. O processo foi acelerado pela decisão de bombardear atomicamente as cidades japonesas. A China hoje depende de várias regiões – da Austrália, da América do Sul, da África. Se entrar num conflito, tem que ser rápido e com objetivo limitado.
Como a Índia entra nessa disputa pela hegemonia como potência?
Paulo Vicente – Primeiro, a China teria atingido o pico de seu modelo de crescimento, inclusive tendo anunciado a nova estratégia no ano passado, com a aposta no seu potencial para a chamada prosperidade comum. O que se fala explicitamente é que a prosperidade comum é mais importante do que o crescimento comercial. Se ela atingiu o pico, agora vai andar de lado e para trás. A Índia, por sua vez, tem um crescimento econômico e demográfico e ainda nessa década deve ultrapassar a China em população. Na próxima década estima-se que ela torne-se economicamente mais relevante do que seus vizinhos. Hoje, a Índia já recebe parte dos investimentos que iam para a China, que ficou mais cara e teve suas indústrias de tecnologia atacadas recentemente. Muitos investidores procuram a Índia para ter um segundo fornecedor, com mão de obra mais barata. Existem outras opções, como Vietnã e Bangladesh, mas a Índia se destaca pelo tamanho.
Como o Brasil é candidato a potência hegemônica?
Paulo Vicente – Temos a marcha do país para o Pacífico, com o deslocamento da população puxado pelo agronegócio. Há várias fases nesse processo. A primeira é a busca por terras mais baratas e férteis, etapa encerrada, com a sobra de terras piores. A segunda fase estamos vivendo há 40 anos e envolve a produção maior, ou seja, mais produtividade. Foi fundamental nesse processo o papel da Embrapa e da expansão da infraestrutura, como as estradas, além do avanço do sistema bancário e outras estruturas como a educacional. Existe um ecossistema de produção e de escoamento que que tem mais 15 anos pela frente, puxado pela agricultura de precisão e investimentos em infraestrutura. A próxima fase é como crescer, e esse crescimento deve ser liderado pela agroindústria. Ou seja, pega-se o insumo e se industrializa o mesmo, agregando tecnologia e marketing. O exemplo clássico é o chocolate belga e o suíço. Os dois países tinham gado leiteiro, mas com a importação de cacau e açúcar dos Trópicos, criaram uma indústria de chocolates.
Parece clichê, mas estamos falando em valor agregado?
Paulo Vicente – Sim. A França não vende uvas da região de Champagne e sim o Veuve Clicquot. O cinturão do milho nos Estados Unidos criou o corn flakes e o vendeu como solução para o café da manhã. Ganha-se muito valor, multiplica-se por 20 a 30 vezes o valor do produto. A soja bateu o preço de R$ 180 reais a saca de 60 kg. Ou seja R$ 3 reais por kg. A carne vegetal, baseada em soja, pode ser vendida a R$ 90/kg. É muita coisa. Se pegarmos a safra brasileira, estimada em US$ 2 trilhões, podemos multiplicá-la para um valor de dezenas de trilhões.
Como fica a questão ambiental, ainda mais com as críticas que temos recebido em todo o mundo?
Paulo Vicente – Há uma grande reclamação externa e com razão, porque estamos pegando cada vez mais terras menos produtivas sem ganho algum e jogando mais commodities no mercado, ao invés de produtos com valor agregado. Quanto mais commodities, menor o valor pago por eles. É uma burrice. É preciso industrializar esses produtos básicos e certificá-los internacionalmente, com selos ambientais. O Brasil tem ótimas leis nessa área e a maior cobertura vegetal percentualmente falando, mas não se divulga isso. Parte do agronegócio já entendeu o que é necessário fazer, mas tem outra parte que ainda não entendeu que é necessário agregar valor e fazer propaganda, investindo em tecnologia e marketing.
E em termos de ciclos tecnológicos, onde estamos?
Paulo Vicente – Há três grandes eixos que moldam o mundo atual: o da robotização e Inteligência Artificial; o de novas fontes de energia e novos materiais; e o da melhoria humana. O primeiro reduz a necessidade de mão de obra, num mundo em que o crescimento da população se estabiliza e a mão de obra fica mais qualificada. No caso da procura de novas fontes, vamos reduzir a pegada de carbono e de lixo, inclusive com a exploração espacial, saindo da Terra. No terceiro eixo, temos o aumento da longevidade, o que significa valorização do capital intelectual por mais tempo.
Bom, depois de falar do mundo em geral, como entender a atual crise na Ucrânia?
Paulo Vicente – Temos de nos voltar para a história para entender as raízes do problema e usar a técnica de cenários, com cruzamento de variáveis para prever os próximos passos. Uso os jogos de guerra para simular e entender o que está acontecendo naquela região, mais recentemente a partir de 2014, que é a fase recente de uma crise que começou na Primeira Guerra, passou pela Revolução Russa de 1917 e avançou pela Segunda Guerra. Nesse meio tempo, países como Finlândia e Polônia ficaram independentes da Rússia, enquanto outros continuaram como parte da federação até há pouco tempo. Na Segunda Guerra, inclusive, os russos dividiram a região no entorno com os nazistas, tomaram parte da Romênia. No pós-guerra, eles intervieram na Hungria (1956) e na antiga Checoslováquia (1968) para ficar em dois exemplos. Ou seja, não é de se espantar que ninguém por lá confie na Rússia. Há mais de 100 anos de trauma.
E como se dá o movimento atual da Rússia de Putin?
Paulo Vicente – A Rússia perdeu força nesse processo, inclusive econômica, e começou a se recuperar em 2000, quando iniciou a exportação de petróleo e gás para a Europa. Ou seja, sua maior ameaça – em função da OTAN – também é seu maior cliente. Ela ficou melhor economicamente, por outro lado viu países do antigo Pacto de Varsóvia entrando para a OTAN. Alguns antes mesmo de entrar para a OTAN, organizaram-se para uma defesa mútua contra a Rússia. Com os movimentos em anos recentes, os ucranianos cansaram da interferência russa e fizeram sua Revolução da Dignidade em 2014, ironicamente um século após o começo da Primeira Guerra Mundial. Os russos reagiram, tomando a Criméia e estimulando a revolução na região de Donbass. Resumindo: todos os pactos de não agressão assinados pela Rússia foram rasgados na crise da Criméia. O conflito não acabou em 2015.
Neste momento em que falamos, temos um cenário de pós-inverno, com derretimento da neve e muita lama, uma situação que já foi enfrentada por Napoleão e por Hitler, em diferentes momentos históricos. A Rússia tem armas sofisticadas, como mísseis hipersônicos e tanques robotizados, mas são em número menor. E mais: a Rússia precisa acomodar um orçamento militar tendo uma economia aproximada com a do Brasil ou da Itália. É uma resposta difícil.
A Rússia já chegou à capital ucraniana, Kiev. Isso consuma a dominação?
Paulo Vicente – Tomar Kiev é uma tarefa complexa, com o deslocamento de blindados num terreno enlameado. Kiev é uma cidade de 3 milhões de habitantes, similar a Belo Horizonte ou Lisboa. Ela não será tomada em dois dias. As informações que temos até agora são contraditórias e não há como confirmar tudo que se ventila, mas a verdade é que vemos caças ucranianos ainda, com uma logística que parou, ao menos temporariamente, parte do exército russo. Os dois lados sabem que essa guerra vai se estender por semanas ou meses. E isso mesmo com a Rússia tendo levado 80% da sua força militar para a Ucrânia. Não há precedente histórico de uma tomada de território tão rápida, ainda mais em um país grande, como a Ucrânia, cujo território se assemelha ao da França, por exemplo.
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A percepção é que Volodymyr Zelensky esperava uma ajuda maior, talvez militar, do Ocidente, e se sentiu traído…
Paulo Vicente – A Ucrânia não faz parte da OTAN. Talvez, nos bastidores, houvesse a promessa de fazer, mas efetivamente não faz. Então a OTAN não tinha comprometimento além do que está fazendo. Um passo além seria enviar armas e mais mísseis, e talvez organizar tropas de voluntários, o que não caracteriza um envolvimento do governo. Outra possibilidade seria fornecer mais armas ou até mesmo contratar mercenários. Isso seria o possível para apoiar a Ucrânia sem declarar uma guerra direta com a Rússia. O Ocidente sabe que uma resposta militar se desdobra em uma guerra mundial e Putin, se sentindo ameaçado nesse cenário, pode escalar para uma guerra nuclear. Por outro lado, esse é um problema que já vimos na Segunda Guerra, quando ninguém estava disposto a enfrentar a Alemanha nazista pela Chequolováquia, ou pela Renannia. Mas essas vitórias ampliaram a confiança dos nazistas, que ficaram cada vez mais ousados. Em outra comparação, Putin já declarou a vontade de refazer a União Soviética, o que inclui reincorporar países que hoje são da OTAN, como Letônia, Lituânia e Estônia.
Paralelamente, parece que a preocupação de Putin é com a expansão da OTAN…
Paulo Vicente – Muita gente diz que a Rússia tornou-se um estado petrolífero: quando o petróleo está em alta, eles se acham mais fortes. É fato que Putin está preocupado com a expansão da OTAN e que sabe que, se os vizinhos forem devolver o que os russos fizeram ao longo dos anos, a vingança será grande. Putin pode estar aproveitando essa alta do petróleo, quando está mais forte, para tentar tomar as áreas de surpresa, como fez na Criméia. Dessa vez os americanos gritaram, mas ele insiste em desfazer o que foi feito em termos de acordos nos últimos 30 anos, e que moldaram uma OTAN mais forte. Ele também fala para o público dele, interno.
Além de Putin, temos outros personagens internacionais ganhando a cena, como Macron, presidente da França, e o próprio presidente dos Estados Unidos. Falta Angela Merkel, que não é mais a chanceler alemã?
Paulo Vicente – Merkel era uma grande gerente, mas não necessariamente uma grande diplomata. Ela era, no entanto, muito respeitada. Acho que Putin tinha medo da Merkel (risos). O governo alemão atual está ainda tomando pé do poder na Alemanha e não mandou tropas para a região e nem liberou seu espaço aéreo para alguma ação da OTAN. Para Biden, a Ucrânia é um teste. Se ele cede espaço, dá um sinal verde, por exemplo, para uma ação da China em Taiwan. Recentemente, houve a questão do Afeganistão, onde a saída americana foi desastrosa, embora necessária. Os americanos perderam 20 anos de recursos, numa guerra de baixa intensidade e agora os conflitos são de grande intensidade. Macron também usa o conflito para seu público interno.
Para finalizar, onde entra a energia nesse imbróglio?
Paulo Vicente – A Europa e os Estados Unidos querem se livrar da dependência de óleo e gás da Rússia e do Oriente Médio. E a aposta são os combustíveis renováveis. Existe a fachada ambiental, que é bastante real, inclusive com incentivos para reduzir a pegada de carbono, etc. Mas também existem os interesses geopolíticos e econômicos. As tecnologias renováveis ainda vão levar de 10 a 20 anos para se consolidar e, enquanto isso, é preciso ter fases intermediárias. No caso dos Estados Unidos, investiu-se no gás de xisto, passando para a energia solar em terra, antes de avançarmos para a exploração solar em órbita estacionária, com a energia sendo enviada via laser ou por micro-ondas. Isso vai levar tempo. Os chineses estão apostando nisso também. No caso dos russos, a corrida é menor, mesmo porque eles têm o óleo e o gás, cujo maior cliente é a Europa.