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Conflito na Ucrânia completa um ano com empate técnico

Professor Paulo Vicente, da FDC, fala sobre os possíveis desdobramentos da guerra, inclusive das perspectivas para o Brasil

ucrania um ano Paulo Vicente
por Redação março 27, 2023
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A guerra da Ucrânia completou um ano e muitas coisas mudaram desde o começo do conflito. Para o professor Paulo Vicente, da Fundação Dom Cabral, o embate entrou numa fase que lembra a Primeira Guerra, com dois exércitos entrincheirados. Nessa entrevista, ele fala sobre os possíveis desdobramentos da guerra, inclusive da perspectiva de o Brasil – assim como toda a América Latina – tornar-se destino de investimentos em função das mudanças geopolíticas globais. Esses movimentos envolvem não somente o cenário europeu, como também as iniciativas na Ásia, com especial destaque para o papel da China. Inclusive, com a possibilidade de novo conflitos.

Para muitas pessoas, essa guerra seria um “passeio” para a Rússia, mas parece que não é o que notamos até agora. Qual é a sua avaliação?

© – Shutterstock

Uma parte das pessoas achava que a Rússia iria vencer essa guerra fácil, mas eu faço parte da outra parte. Os russos não tinham nem capacidade de logística, nem força militar para tomar um país tão grande quanto a Ucrânia. Eles subestimaram a capacidade da Ucrânia e superestimaram a sua própria capacidade, provavelmente baseados em dois erros. O primeiro foi achar que a Ucrânia cairia como caiu o Afeganistão no passado. Porém, os ucranianos estão se preparando há pelo menos oito anos para esse conflito. Seria uma segunda rodada de um processo que começou em 2014. E sabiam que seria uma guerra de extermínio. Então, não existia esse “entreguismo” que havia no Afeganistão. O segundo erro envolve a logística russa, muito baseada em ferrovias e caminhões. Eles teriam que atacar a Ucrânia usando as ferrovias, caso contrário estariam limitados a 150 km das fronteiras. E foi o que aconteceu. Os ucranianos travaram os entroncamentos ferroviários e a logística russa rapidamente colapsou.

O que mudou a partir com esse quadro inicial?

A guerra que falavam que seria de três dias – e que documentos russos capturados pelos ucranianos estimaram em 15 – chegou nas primeiras seis semanas com a desistência da tomada de Kiev. O segundo movimento seria concentrar-se à leste do rio Dniper, mas isso também não aconteceu. Com isso, os russos passaram para um terceiro plano, que era tomar o sul da Rússia, chamado historicamente de Nova Rússia. Da mesma forma, eles não conseguiram avançar significativamente. E, nesse um ano, a força militar russa foi degradada por uma série de erros. A invasão Inicial foi muito ruim e teve muitas perdas fortes. Depois disso, a incapacidade de coordenação fez com que eles se voltassem para uma estratégia de ataques de massa e em pequenas regiões, muito similar ao que aconteceu na Primeira Guerra. A máquina russa – que se imaginava como o rolo compressor que foi no final da Segunda Guerra – não se manifestou.

Por que esse rolo compressor não aconteceu?

Por problemas logísticos, de comando e controle e de comunicação. Na prática, os russos só conseguem operar com pequenas unidades e muito limitadamente. A guerra virou de linhas estáticas, com combates por localidades. Houve o recrutamento das tropas de reserva, somando 300 mil soldados e agora falam em mais 500 mil, mas não adianta ter os homens, se não houver treinamento, se não houver sargentos e tenentes suficientes e treinados. O que estamos vendo é uma situação estática e batalhas com dezenas de milhares de mortes para avançar alguns quilômetros na linha de frente. Ninguém sabe até quando essa situação permanecerá e já há sinais de fratura, tanto entre as forças militares quanto na área política russa.  

E os ucranianos?

© – Shutterstock

Eles estão recebendo cada vez mais recursos dos ocidentais, mas também têm uma quantidade finita de gente. É uma guerra de trincheiras. Agora, a lama começa a secar com a chegada da primavera, os ucranianos pretendem fazer uma ofensiva. Não se sabe se eles terão condições para tanto, pois mandaram muitas de suas reservas para segurar o ataque russo em Bakhmut. E, nesse caso, foi um ataque muito parecido com o que os russos fizeram na metade da Segunda Guerra, com pouca disponibilidade de munição. Lembra muito de alguns dos momentos mais críticos da Segunda Guerra, no final da ofensiva alemã de 1941. O resultado é uma quantidade grande de mortes. Os números são estimados, mas não se sabe de fato das perdas reais. Isso leva o Putin para uma guerra de sobrevivência. Se ele não vencer a guerra, pode sofrer um golpe. Outra possiblidade é conflito virar uma guerra civil, se o processo continuar se desenrolando por mais dois anos. A possibilidade de um racha interno é bem grande.

Como você vê o Putin nesse conflito?

Ele acredita ser um novo czar, um Pedro, o grande, renascido. A fala dele é meio ilusória, né? Quando ele diz que vai recriar o império russo, ou recriar a antiga União Soviética, ele imediatamente sinaliza que vai invadir os países bálticos e retomar parte da Polônia, Romênia ou da Eslováquia. E mesmo a Finlândia, que foi parte da Rússia imperial. Ele fez uma espécie de privatização quando assumiu o poder na Rússia, favorecendo seus amigos. E criou uma estrutura híbrida feudal-mafiosa. Quem não concorda com ele, está sujeito à ser assassinado.

Além da questão de soldados, existe o problema dos equipamentos. Qual é a avaliação nesse caso?

Num primeiro momento, os países ficaram com medo de se comprometer para defender a Ucrânia, com a ideia que ele cairia rapidamente. Era uma visão, principalmente da Alemanha, dependente do gás e do petróleo russos. Ao longo do tempo se percebeu que essa queda rápida não aconteceria e a Alemanha, em particular, precisava se livrar da dependência energética. E começou-se o envio de equipamentos, que foi lento no início. Agora, já na virada do ano, entenderam que precisam mandar os tanques mais modernos. Se a guerra durar, pode ser que a Ucrânia terá quase todos os equipamentos que precisa e se converter num outro país.

Os outros países também estão se armando?

Sim. A Polônia, por exemplo, percebeu que a Alemanha não era um fornecedor confiável de blindados e foi procurar os americanos e coreanos. Os países já estavam se organizando antes contra a Rússia porque vários deles têm um histórico de invasão. A ideia deles é de que tem se proteger com ou sem a ajuda dos ocidentais. A Alemanha também avança no aumento da verba militar e Finlândia e a Suécia estão pedindo para entrar para a OTAN, ou seja, vão aumentar seus gastos militares. Reino Unido sempre esteve atento aos russos e Portugal e Espanha acreditam que estão longe do conflito. E há movimentos como o da Romênia e Moldávia, pensando em se reunir para formar um só país.

Muito se falou na possibilidade de Putin ativar armas nucleares…

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Ele ameaçou e vai continuar ameaçando, mas há três níveis de guerra nuclear, a tática, operacional e a estratégica. Dificilmente você vai direto para terceira. A ideia geral é que se terá uma escalação, porque o raio de ação delas é tão grande que afetam as próprias tropas de quem lançou, de forma que não é uma arma tática das mais eficientes. Você precisa afastar a tropa para lança-la e, quando faz isso, perde terreno. Não acho viável e, se houver esse uso, a OTAN sinalizou que vai destruir a unidade militar que disparar a arma nuclear. Na possibilidade de a situação escalar para o nível operacional, estamos falando, entre outras coisas, de mísseis. Mesmo que se escale para o último nível, seria uma guerra com poucas trocas nucleares. E certamente uma nova fase na história da humanidade.

E como está sendo o uso das armas cibernéticas e dos drones?

Os drones nessa guerra vieram com vários modelos e são muito efetivos, o que disparou uma compra de dispositivos, pois eles são mais baratos de operar do que um avião e não têm a possibilidade de perda do piloto. Além disso, o treinamento não é tão complexo. Já a guerra cibernética está menos efetiva do que se imaginava e não houve, por exemplo, a capacidade de derrubar a rede de energia dos envolvidos. Ela está sendo efetiva no sentido de capturar informações e tem um uso mais tático.

A guerra também espelha ações geopolíticas em outros lugares e a China é um ator relevante nesse sentido, inclusive com a possibilidade de termos mais conflitos.

A China diz claramente que vai resolver o problema de Taiwan até 2040. É uma guerra. “Eu vou resolver o problema e vai ser militarmente”. Por isso vemos muita gente saindo de lá e indo para outros lugares, com Vietnã e Malásia, que estão entre os maiores receptadores de fábricas emigradas. O movimento de migração, no entanto, beneficia todo o Sudeste da Ásia, com muitas empresas buscando mão de obra barata. O mesmo pode acontecer com países africanos como Quênia e Tanzânia. Todos os países mais baratos que a China vão receber uma parcela dos investimentos.

Quem ganha nessa equação?

As regiões já citadas, considerando os investidores que também não querem pagar os preços de mão de obra da Europa e dos Estados Unidos. Na América Latina, principalmente o México, mas também Costa Rica, Panamá, República Dominicana, Colômbia, Brasil, Argentina, Paraguai, Chile, Uruguai e até mesmo o Peru e Equador. Na Europa, teremos Portugal e Espanha, assim como Marrocos e Tunísia, no norte da África. O Brasil será beneficiado e nem precisa sermos perfeitos, porque a mão de obra é mais barata em relação a Europa e Estados Unidos e temos um risco praticamente zero.

E isso é bom para nós?

A China ficou cara e a Ásia, por conta da China, ficou arriscada. Dessa forma, é possível que esse dinheiro comece a vir para a América Latina, o que pode nos levar à uma “Década Achada”, depois de tantas décadas perdidas.

Ainda na pauta da guerra entre Ucrânia e Rússia, o professor Paulo Vicente criou um war game que simula o primeiro ano do conflito. Ele é desenhado para ser jogado individualmente e tem duração média entre 30 e 60 minutos. O jogo não requer conhecimento militar ou de estratégia e tática prévios, nem é preciso domínio dos andamentos da guerra. Ele é do tipo Print & Play, então basta o jogador baixar, imprimir e jogar. O objetivo é que o jogador tenha em suas mãos as tomadas de decisões que estão envolvidas nesse contexto. No ambiente acadêmico e organizacional, ele pode ser usado em dinâmicas que envolvam estratégia e todo o processo decisório. O jogo está disponível gratuitamente aqui.




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