Essa é a avaliação de Gabriela Augusto, fundadora e diretora da Transcendemos Consultoria e palestrante convidada da Fundação Dom Cabral. Formada em direito pela PUC-SP, além de especialista em Design Thinking pela Echos Innovation Lab, ela é uma referência sobre as políticas de D&I no Brasil. Em 2022 foi eleita como uma das 50 mulheres de impacto da América Latina pela Bloomberg Línea e, nessa entrevista, ela fala sobre mercado de trabalho para pessoas trans, inclusão, diversidade e políticas afirmativas.
Qual é a importância de se comemorar o dia da visibilidade trans? (29 de janeiro)
Quando falamos do dia da visibilidade trans, a gente tem a princípio dois motivos para comemorar. Primeiro, lembrar das nossas conquistas, porque eu acho que há motivos, sim, para a gente ficar feliz. Estamos tendo alguns avanços enquanto comunidade trans. Até pouco tempo, por exemplo, não podíamos doar sangue aqui no Brasil, né? Até pouco tempo, transgeneridade era vista como doença. Há algumas décadas, tínhamos dificuldade de sair na rua. Então, chegamos a algumas conquistas, inclusive com um número crescente de pessoas trans no mercado de trabalho formal. Na publicidade e comunicação, de maneira geral, se fala no assunto com mais frequência. Em segundo lugar, não devemos nos esquecer que ainda existem muitos desafios pela frente e devemos sempre destacar que há muito a que se mudar em termos de igualdade. Nós não estamos presentes da maneira que deveríamos estar no mercado de trabalho e é difícil apontar posições de liderança exercidos por pessoas trans. Temos pessoas em posição de suporte, em áreas operacionais. Sobre a data, há esses dois lados: celebrar conquistas, mas lembrar do que é ainda preciso ser feito.
Quando falamos de trans, estamos falando exatamente de quê?
Trans é um conceito que vem de transgênero, que significa uma pessoa que não se identifica com o gênero que foi designado a ela no momento do nascimento. No meu caso, quando eu nasci disseram que era um menino, mas ao longo da minha vida eu passei a entender e viver publicamente como mulher. Esse é o primeiro ponto e aí quem nos lê e não se entende como uma pessoa trans, provavelmente é uma pessoa cisgênera ou cis. Cisgênero é basicamente aquela pessoa que se identifica com o gênero que foi designado à ela no momento do nascimento. São dois conceitos básicos que a gente precisaria ter em mente quando vamos para o mercado de trabalho.
Muitas empresas têm um discurso de inclusão, mas como você vê a diferença do discurso para a prática?
Quando falamos de diversidade nas empresas, de maneira geral, a prioridade geralmente é a questão racial. E há uma série de motivos, incluindo o cenário no Brasil e eventos recentes como o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos e a do rapaz negro no supermercado no Rio Grande do Sul. Isso fez com que as empresas vissem uma maior urgência de tratar o tema racial, mas aí em segundo plano vem a questão LGBTQI+. E as empresas geralmente concentram os seus investimentos no tema LGBTQI+ em junho (mês da diversidade), e muitas vezes nem dão a atenção devida à questão trans, porque é um erro comum observar o grupo de pessoas LGBTQI+ como grupo homogêneo. Mas, dentro da sigla há diferentes dores. A dor de um homem gay não é mesmo de uma travesti. E eu vejo que muitas empresas se esquecem disso. Quando a gente vai fazer um raio-x de uma organização, geralmente vemos grupos de afinidade – mulheres, pessoas negras e LGBTQI+. E, nesse último caso, o que se observa, em sua maioria, são grupos de homens gays brancos e se desconsidera as outras intersexualidades, como as mulheres lésbicas e as pessoas trans negras, entre outros. Ainda há um uma longa jornada para que a gente consiga não só dar o destaque que o assunto merece, como também trazer essa representatividade para as empresas.
Há barreiras adicionais para subgrupos como, por exemplo, mulheres trans negras no mercado de trabalho?
Sim. Quando esses marcadores sociais se sobrepõem, podemos ter barreiras adicionais. Quando o assunto é pessoas trans, a gente deve falar de passabilidade, um conceito muito importante. Por exemplo, existe um modelo ideal do que é ser uma mulher, que determina que ela tenha um cabelo longo e uma voz mais fina e, na medida em que uma mulher trans se distancia desse modelo ideal e se torna “menos passável”, ela também se torna mais sujeita à violência. E é importante entender isso quando formos definir as estratégias empresariais de inclusão. As empresas não podem estar só preparadas para acolher aquele profissional trans que se enquadra num modelo ideal, tipo o homem trans branco com a barba bonitinha e com um corpo dentro daquele padrão. Às vezes é um homem trans que ainda não fez a hormonização e pode ter uma voz mais fina, pode não ter barba. Da mesma forma, pode-se ter uma mulher trans que não fez seu processo de transição por opção ou por falta de recursos.
Ou seja, há diferenças…
Sim e há uma série de outras características que devemos ter em mente para conscientizar os colaboradores quando pensamos em estratégias de recrutamento. Precisamos entender que às vezes uma pessoa trans pode não estar 100% dentro daquele padrão que se espera.
Você comentou que mesmo quando existe uma política de inclusão, parece que o profissional trans fica alocado em posições operacionais e de apoio. É um fato?
Antes de avançar, há uma outra questão, que podemos explicar com o que se chama ‘efeito da máquina de capuccino’. Quando as empresas estão contratando profissionais trans, muitas vezes elas dizem o seguinte: “ah, mas nós já temos uma. Precisamos de outra se esta está funcionando?” Acho que é esse mindset, né? Um pensamento que já limita as ações de inclusão. E nós não somos um totem, alguém que está ali para ser exibindo e falar “olha, eu até contratei uma trans”. Nós precisamos de algo mais, principalmente porque estudos da GLAAD, a maior organização mundial de defesa da mídia para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Queer, indicam que 12% da geração Z se identifica como trans.
Mas o que fazer?
Devermos sair do básico e começar a falar de uma inclusão de verdade. Porque se a gente fala de uma inclusão racial, a gente precisa sempre se aproximar da representatividade das pessoas negras na sociedade brasileira e a mesma coisa com as pessoas trans. Vou dar o exemplo da TIM, a quem ajudamos a criar um programa de incentivo, com oferta de bolsas de graduação para pessoas trans. O que se fez foi investir no desenvolvimento de talentos. É preciso contratar, sim, mas também é preciso desenvolver. Vamos apoiar e impulsionar essas pessoas para o topo também.
Aliás, como nasceu a Transcendemos e como foi sua formação profissional?
Eu consegui uma bolsa de estudos do ProUni pra estudar direito na PUC de São Paulo. Sem essa bolsa, eu não estudaria lá porque não tinha dinheiro para pagar o curso. Quando iniciei a universidade, ainda não tinha passado pela minha transição de gênero, o que aconteceu no final da graduação. Foi então que me deparei com o desafio de como conquistar uma boa posição no mercado de trabalho. Eu comecei a olhar para empresas onde eu gostaria de trabalhar e não vi pessoas parecidas comigo. Não vi tantas mulheres em posição de liderança, nem tantas pessoas negras e não me lembro de ter visto nenhuma pessoa trans. E pensei: “o que posso fazer para mudar essa realidade?”.
Qual foi sua atitude?
Comecei estudando os recursos que eu tinha à minha disposição – e eu tinha poucos: zero dinheiro e zero alcance. Então escrevi um livrinho que eu chamei de Manual da Empresa de Respeito e coloquei nele os principais conceitos sobre como combater racismo, intolerância às pessoas com deficiência e o combate à LGBTfobia. Eu fiz esse livrinho comecei a distribuir várias empresas que ficavam perto de onde eu morava e essas empresas começaram a me chamar para palestras, treinamentos. O passo seguinte foi fundar a Transcendemos, em 2017, e comecei a ajudar essas empresas a se tornarem mais inclusivas para além dessa parte de treinamentos. A Transcendemos se tornou uma empresa de consultoria estratégica, que é o nosso posicionamento atual. São cerca de 320 clientes, não só no Brasil, mas em toda América Latina. Hoje, apesar da minha formação em direito eu me posiciono como uma consultora em assuntos de diversidade e inclusão (D&I).
Esse trabalho envolve várias atividades?
Sim, temos várias iniciativas que buscam levantar dados sobre o cenário dessas organizações, baseadas na forma como as pessoas se autodeclaram LGBTQI+s ou negras, etc. Nossas pesquisas são baseadas na autodeclaração e a partir daí trabalhamos com dois pilares. O primeiro deles é o da aprendizagem, ou seja, educação corporativa. Temos vários tipos de soluções, que vão de palestras até conteúdo em vídeo para microaprendizagem. Promovemos uma imersão dos colaboradores em temas de diversidade e inclusão. O segundo pilar é o da consultoria, que se divide em dois caminhos: um de suporte à gestão de D&I da empresa e um em que assumimos toda a gestão de D&I. Para as empresas que buscam um suporte, temos uma solução chamada Plataforma Empresa de Respeito, que é um recurso online, onde as empresas são analisadas e recebem um apoio contínuo e uma certificação em D&I. Nós avaliamos a maturidade de D&I da empresa e passamos a acompanhá-la e, se ela recebe uma pontuação desejada, recebe a certificação.
Onde o D&I está alocado nas empresas que vocês atendem?
É um movimento que vem ganhando força de empresas, mas é um número menor de organizações que têm um departamento ou profissional dedicado única e exclusivamente à diversidade e inclusão. E é até bom, porque gosto da ideia de que não exista uma área isolada e sim que a cultura de D&I seja central nas empresas. É como a inovação, ou seja, não adianta ter um departamento e sim que exista uma cultura de inovação.
O cenário que você enfrentou desde 2017, quando criou formalmente a Transcendemos, mudou?
Muita coisa mudou. Em 2017, era raro encontrar uma empresa com grau mediano de maturidade. Era todo mundo bem cru, com raras exceções. Hoje, conseguimos apontar empresas com iniciativas relevantes na área de D&I, temos rankings e certificações que conseguem apontar empresas boas para trabalhar em termos de inclusão e diversidade. O que eu acho é que ainda não existe nenhuma empresa muito avançada nesse sentido. Podemos falar de algumas empresas num grau médio, mas mesmo essas empresas que estão no topo das ações, em termos de maturidade de D&I, ainda têm um longo caminho pela frente. Mesmo as melhores empresas para LGBTQI+ ainda têm poucas pessoas trans em cargos de liderança.
Sua consultoria tem vários exemplos de busca pela diversidade e inclusão no mercado corporativo. Poderia nos falar de alguns deles?
Um exemplo interessante é o grupo DASA, que tem vários hospitais e laboratórios de referência. Trabalhamos em treinamento de mais de 2 mil lideranças a respeito da cultura de diversidade e inclusão. Conseguimos treinar várias dezenas de turmas em liderança inclusiva e foi particularmente interessante porque estamos falando de acesso à saúde. Estamos pensando não só no dia a dia dos colaboradores, mas de quem é paciente e usuário dos serviços do grupo. Outro exemplo é da Valeo, onde havia um colaborador trans passando por um processo de transição. Era uma pessoa que já trabalhava lá há anos e a gente fez todo um trabalho de conscientização de mudança de processos para que a fábrica se tornasse mais amigável.
Há diferença de consultoria para ambientes onde existem profissionais em transição e outro em que se procura contratar profissionais trans?
Acho importante destacar que quando se fala de inclusão de trans no mercado de trabalho, geralmente caímos na coisa da contratação, né? Como que a gente contrata e tal. E aí a gente esquece que muitas vezes as pessoas trans que estão conosco, mas que não se sentem à vontade para serem quem são e, em algum momento, elas podem passar pela transição. E é um desafio. Envolve questões de se definir banheiros e vestiários específicos, etc. Mas passa principalmente pela questão de se pensar estratégias de comunicação. E isso envolve sensibilizar os colegas a respeito de como o colaborador que está transicionando quer ser tratado.
E esse processo de inclusão também traz benefícios para a empresa?
Existem pesquisas que dizem que empresas mais inclusivas são mais criativas. Elas permitem que o ambiente de trabalho seja mais criativo. Todo mundo ganha quando a gente fala de diversidade de inclusão e isso é bom para todos os colaboradores. As empresas mais inclusivas são também aquelas onde as pessoas são mais felizes, mais livres para serem quem elas são. Então, isso se reflete em satisfação do colaborador e esse colaborador que vai trabalhar com sorriso no rosto também vai atender melhor o cliente. Os clientes, por sua vez, vão se sentir mais representados pela diversidade dos profissionais que vão atendê-los.