De nada adianta implementar regulamentações ou dispor de um processo robusto de compliance, se a empresa não tiver uma cultura de integridade. O raciocínio, a respeito do caso Americanas, foi feito por Heiko Hosomi Spitzeck, diretor do Núcleo de Sustentabilidade da Fundação Dom Cabral, em artigo publicado na Revista Época Negócios. 

Heiko, em entrevista a Thomaz Castilho, no podcast FDC Debates, disse que é possível perceber a presença da cultura de integridade em fatos relevantes na condução de uma empresa, como “relatar indicadores negativos, saber ouvir críticas e reconhecer erros”. 

A cultura de integridade tem impacto direto nos aspectos de ESG (do inglês, Environmental, Social and Governance) da empresa. Segundo o professor, se o caso das Americanas feriu a governança de indicadores financeiros, que são altamente regulados e seguem um padrão, “como será a governança dos indicadores sociais e ambientais?”.

Publicamos, abaixo, os principais pontos abordados tanto no artigo quanto na entrevista de Heiko Hosomi Spitzeck. Acompanhe:

Histórico do caso Americanas

caso americanas

“Parece uma história de suspense. No dia 11 de janeiro de 2023, a Americanas publicou um fato relevante, anunciando “inconsistências contábeis no valor de R$ 20 bilhões” e declarando que “não é possível no momento determinar o impacto nos balanços”. 

Na sequência, o CEO Sergio Rial e o CFO André Covre renunciaram, depois de apenas nove dias na empresa. O valor de mercado da companhia caiu de R$ 10,83 bilhões para R$ 2,51 bilhões em um dia. Nas redes das quais participo, vi o comentário: ‘Já imaginaram a sala de crise nas Americanas e na PwC?’. A PwC é a auditora da Americanas desde 2019, e aprovou as contas de 2021 sem ressalvas”. 

Questão de governança

“Não é a primeira vez na história que aparecem ‘inconsistências contábeis’ numa empresa investida. Em 2019, a Kraft Heinz divulgou que estava enfrentando problemas de contabilidade. A Kraft Heinz tinha que corrigir U$ 15,4 bilhões nos balanços e perdeu U$ 12 bilhões em valor de mercado.  

Durante o escândalo da Kraft Heinz, diversas fontes criticaram o modo como a empresa lidava com o bem-estar dos funcionários. Alguns relatavam que ‘cada empregado tinha de justificar sua existência diariamente na empresa”. 

A questão da transparência

“Em casos como o da Americanas, a primeira questão que surge é em relação à transparência. Um executivo na minha rede chegou ao cerne da questão. ‘Como a auditora, a PwC, não viu?’ Só para colocar o valor em referência: R$ 20 bilhões é o que todo o estado de São Paulo gastou nos primeiros dois anos para combater a Covid.

Nas minhas discussões com executivos, foram feitas comparações com casos como Enron, Worldcom e particularmente com o Banco Nacional. 

Se a empresa não é transparente, o mercado financeiro tem dois agentes que devem garantir a transparência: os auditores e a Bolsa. A perda de confiança pode ser fatal para uma auditora, como mostrou o caso da Arthur Andersen. Na minha rede, um executivo se dirigiu aos auditores: ‘Se metade do que foi anunciado for verdade, a PwC não passa nem orçamento mais na minha empresa’. 

O caso surpreende também porque a Americanas é parte dos principais índices de ESG do país: está listada no novo mercado, faz parte do ISE e do DJSI”. 

A importância da cultura empresarial

caso americanas

“Uma das frases mais famosas do guru de gestão Peter Drucker é: ‘A cultura come a estratégia no café da manhã’. Não adianta implementar regulamentações e um processo robusto de compliance, se não houver uma cultura de integridade. 

Você pode perceber a presença dessa cultura em vários fatos relevantes na condução de uma empresa: relatar indicadores negativos, saber ouvir críticas, reconhecer erros, instigar uma conduta correta aos colaboradores, apontando quais seriam os erros, ser proativo em identificar impactos sociais e ambientais, integrar a voz de stakeholders na governança e na tomada de decisão, etc. Quem quer investir em empresas com uma visão de médio e longo prazo, precisa se formar na análise da cultura empresarial”. 

O impacto no ESG

“A pergunta que não quer calar para mim é: se isso acontece na governança de indicadores financeiros, que são altamente regulados e seguem um padrão – tanto nos balanços, quanto na listagem na Bolsa e nos processos dos auditores –, como será a governança dos indicadores sociais e ambientais? 

Você consegue imaginar um CEO renunciando por causa de uma contabilidade errada de emissões? Nessa hora, dá para entender movimentos ativistas como Fridays for the Future e Extinction Rebellion. O sistema criado por nós não valoriza a dignidade humana e um meio ambiente intacto. Cabe a nós mudar o sistema. Que pelo menos paremos de fingir ser surpreendidos quando surgir o próximo caso como o da Americanas”. 

ESG versus filantropia 

Muitos filantropos do mundo de negócios querem causar impacto social e ambiental, e por isso investem em causas laudáveis. Mas não enxergam onde podem ter o maior impacto: nas suas decisões de negócios e na governança das suas empresas. No desdobramento do caso da Americanas, tenho certeza de que vamos ver de novo: funcionários desligados (sem ter nenhuma responsabilidade por aquilo que aconteceu), fornecedores impactados, padrões sociais e ambientais rebaixados para reduzir custos, queda na reputação de auditores e do negócio em geral e aumento de burocracia e regulamentação para todo mundo – mesmo quando não se pode regulamentar integridade. 

Se realmente queremos resultados diferentes, questões de ESG precisam entrar na governança, por duas razões. Em primeiro lugar, para garantir a integridade do negócio e evitar crises como a da Americanas. Em segundo, porque o sucesso de uma empresa no século 21 não se define apenas pelos resultados financeiros. Algumas decisões não trazem benefícios para o desempenho financeiro de curto prazo, mas fortalecem o bem-estar dos colaboradores ou das comunidades, ou então reduzem impactos ambientais negativos – fatores determinantes para a longevidade da organização”.