close

Mercenários e a Guerra híbrida

Em artigo, o professor Paulo Vicente conta como os mercenários são uma espécie de “terceirização” do sistema militar

mercenarios © - Shutterstock

Por

Paulo Vicente dos Santos Alves

Professor da Fundação Dom Cabral

  • Impacto positivo e legados sustentáveis Mais informações
    Impacto positivo e legados sustentáveis

A guerra na Ucrânia trouxe a atenção para o fenômeno do uso de tropas mercenárias. Embora sejam uma prática que remonta a antiguidade, ao longo do século XX os mercenários eram usados apenas em pequena escala em guerras menores.

Desde o final da guerra fria em 1991, com a dissolução da União Soviética, os mercenários começaram a ganhar importância de novo por serem uma tropa relativamente bem qualificada, e que não geram custo fixo, mas apenas variável.

Mas existem ainda outros motivos pelo qual os mercenários são interessantes de usar. O primeiro é que quando ocorre a morte de um deles, isto não gera uma comoção pública por perdas de vida.

O segundo foi a evolução do conceito de guerra híbrida onde o contratante não se expõe com tropas de sua nacionalidade, e isso permite à diplomacia negar a responsabilidade nas ações ocorridas e esconder quem está por trás da ação.

Isto dá uma maior flexibilidade em ações que seriam consideradas ilegais pelas leis internacionais. Envolve uma série de ações que podem ir desde resgate de prisioneiros, até ações terroristas, ou de desestabilização de governos, e mesmo assassinatos.

Guerra híbrida

O conceito de guerra híbrida surgiu em 2007, e é formalmente descrito como uma guerra que não envolve só o aspecto de operações militares (guerra regular), operações irregulares (guerrilha), guerra cibernética (Hyperwar ou Uberkrieg) e ações políticas, econômicas e diplomáticas, mas sim uma combinação de todos estes tipos.

© – Shutterstock

Neste sentido, o uso de guerra cibernética é o que difere a guerra híbrida de tipos anteriores de guerras não-formalizadas. E assim a guerra híbrida entre países é quase que contínua.

As tropas mercenárias não são as únicas que surgiram neste contexto de guerra híbrida. Existem ainda as tropas de voluntários estrangeiros, milícias nacionalistas que se organizam para defender um território, guerrilheiros que surgem para prejudicar uma força que ocupa seu território, e tropas regulares organizadas a partir de mercenários e voluntários.

Neste contexto o uso de tropas regulares treinadas para “operações especiais” também ganhou relevância. Estas tropas entretanto têm um grau de treinamento bastante superior ao das tropas regulares, e portanto é difícil de serem repostas em caso de perdas.

Mercenários modernos

Com a dissolução da União Soviética, as forças armadas do mundo todo viram suas verbas diminuir e o tipo de missão mudar de guerra direta entre nações para operações menores envolvendo desde ações de apoio logístico, treinamento, e ações policiais, até ações de sabotagem, contra insurgência, e inteligência.

As tropas regulares não tinham a flexibilidade para tais ações e eram caras de treinar e operar.

A dissolução da Iugoslávia a partir de 1991, a segunda guerra do Congo (1998-2003), a guerra ao terror a partir dos atentados de 2001, a guerra civil na Síria a partir de 2010, e na Líbia a partir de 2011, criaram um ambiente muito favorável para as tropas mercenárias.

A Blackwater (atualmente parte da Constellis) foi fundada em 1993 nos EUA e recebeu contratos para operar em diversas regiões do mundo pelos motivos já anteriormente expostos, isto é, custo variável, menor exposição de risco, e flexibilidade nas ações.

Neste contexto, surgiu o Wagner Group, em 2014, para atender as necessidades da Rússia de operar na Síria. Depois disto as operações do grupo se estenderam para diversos países na África, e até mesmo Venezuela.

A partir daí começaram a surgir diversas empresas privadas militares, ou PMC (Private Military Companies). A maior parte na Europa e Estados Unidos, mas elas atuam por todo o mundo, particularmente em países instáveis politicamente.

recrutamento mercenarios
© – Shutterstock

O recrutamento de novos mercenários sempre foi uma questão complicada, pois em geral isto é feito entre marginais da sociedade, isto é, ex-soldados que tem dificuldade em se reintegrar na sociedade, soldados do tráfico de drogas, e egressos do sistema presidiário que não conseguem outras formas de emprego. Estas pessoas são treinadas a usar armas, e a disciplina não é rígida. Isto pode ser uma combinação potencialmente complicada para se manter a eficácia da tropa.

Negócios híbridos

Uma vez que estas organizações muitas vezes têm um poder militar maior do que as forças armadas dos países onde atuam, e muitas vezes os governos não têm como pagar diretamente os mercenários, surgiram arranjos econômicos que vão além de um simples contrato de mercenarismo.

Na Síria, o governo paga 25% da produção de petróleo de cada poço mantido em segurança pelo Grupo Wagner. Isto não deixa de ser um contrato de performance com custo variável. E cria um incentivo razoável para que o grupo tome o controle de outro poços.

Na República Centro Africana (RCA), entretanto, o grupo Wagner tomou para si o controle da principal mina de ouro do país. Para vender a produção da unidade, foram criadas outras empresas tais como a Midas, a e Diamville.

O grupo Wagner em específico tem diversas empresas em diversos setores, o que serve de fachada para suas operações, dá um certo grau de legitimidade para as operações, e complica qualquer investigação. 

Esta estrutura não é muito diferente de outras organizações como as de tráfico de drogas, e de contrabando, que operam debaixo de uma cortina de diversas empresas em diversos domicílios para evitar pagar impostos, fiscalização, e dificultar a investigação de suas atividades.

Um fenômeno similar surgiu com as sanções as vendas de petróleo russo a partir de 2022, com o surgimento do que tem sido denominado de “frota fantasma” (shadow fleet). Nesse sistema, petroleiros antigos têm feito rotas para evitar as sanções, trocando o petróleo em portos de nações não alinhadas as sanções, e até mesmo em alto-mar, inclusive causando algum derramamento de petróleo.

Problemas com mercenários

O uso de mercenários, entretanto, não é sem problemas.

Desde crises nos impérios da antiguidade como a Pérsia e Roma, até a renascença, quando Maquiavel escreveu contra o uso de mercenários, este tipo de tropa com frequência acaba ficando forte demais, e sem controle pelo contratante.

Episódios de problemas com mercenários também vêm ocorrendo no mundo moderno, desde o massacre no Iraque feito por membros Blackwater em 2007, até diversos massacres feitos na África por mercenários nas últimas décadas, e o mais recente episódio de um motim do Grupo Wagner na Rússia.

tropa de mercenarios
© – Shutterstock

Tropas mercenárias não têm realmente uma lealdade ao contratante, e podem ser muito indisciplinadas.

No final das contas é uma tropa relativamente barata em termos de custo, mas com um nível de controle também baixo.

Conclusão

No final das contas, os mercenários são uma espécie de “terceirização” do sistema militar.

E, como em toda terceirização, depende muito de controle por parte do contratante – e não se deveria terceirizar partes essenciais do negócio, ou “core business” no jargão de negócios.

Acontece que a defesa nacional é a origem do Estado e seu “core business”, segundo quase toda teoria política, portanto, eles só deveriam ser usados em funções secundárias. Quando uma sociedade tem os mercenários como sua principal forma de defesa nacional, ela deixa de controlar uma função vital do Estado, e a razão pela qual o Estado surge em primeiro lugar. A probabilidade de tal Estado deixar de existir passa a ser considerável neste caso.

——-

Paulo Vicente dos Santos Alves é professor de estratégia da Fundação Dom Cabral.




Os assuntos mais relevantes diretamente no seu e-mail

Inscreva-se na nossa newsletter