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“É preciso tirar a violência sexual infantil da invisibilidade”, diz Luciana Temer

Advogada atualmente preside o Instituto Liberta de Enfrentamento às Violências Sexuais contra Crianças e Adolescentes

luciana temer Luciana Temer (Foto: Divulgação)
por Redação março 18, 2024
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    Impacto positivo e legados sustentáveis

Os dados relacionados à violência sexual contra crianças e adolescentes são alarmantes, e mesmo assim só refletem parte da realidade. Isso porque em muitos casos não há registro de denúncias, fazendo com que a ocorrência permaneça invisível. Dentre as tantas violências há o estupro de vulnerável, a exploração sexual de adolescentes e a violência sexual virtual contra crianças. Todas com números inaceitáveis.

“Não só a violência sexual infantil existe, como está muito presente no país, gerando consequências gravíssimas, não apenas individuais para as vítimas, mas reflexos sociais importantes. As pessoas não falam sobre essas violências, não conhecem as diferenças e características de cada uma e o problema só cresce.”, explica a advogada Luciana Temer, que atualmente preside o Instituto Liberta de Enfrentamento às Violências Sexuais contra Crianças e Adolescentes. 

Luciana Temer é professora de Direito Constitucional da PUC-SP, já foi delegada de polícia, tendo atuado na Delegacia de Defesa da Mulher, esteve à frente da Secretaria de Juventude, Esporte e Lazer do Estado de São Paulo e da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social do Município.

Em ocasião do lançamento de curso gratuito sobre o tema, promovido pelo Instituto Liberta em parceria com a Fundação Dom Cabral, a advogada concedeu entrevista exclusiva ao Seja Relevante, em que fala da importância da conscientização das pessoas, empresas e organizações para o combate ao problema. Acompanhe os detalhes.

Poderia nos contar um pouco sobre você e o que a motivou a estruturar e presidir a organização dedicada ao combate à violência sexual infantil?

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Luciana no seminário Violência Sexual Infantil realizado pela Folha em parceria com o Instituto Liberta (Foto: Jardiel Carvalho/ Folhapress/ Reprodução)

O Instituto Liberta de Enfrentamento às Violências Sexuais contra Crianças e Adolescentes existe no Brasil há sete anos. Ele foi pensado, idealizado e é sustentado pelo filantropo e empresário Elie Horn. Na época em que o Liberta foi criado, eu estava deixando a gestão da Secretaria de Assistência Social de São Paulo e ele me convidou para montar o Instituto. Na verdade, ele é o fundador e eu trabalho para o Instituto desde então.

O que me fez estar nesse lugar é uma pergunta muito provocadora, porque as pessoas acham que eu escolhi tratar desse tema, quando, na verdade, foi uma coisa muito circunstancial na minha vida. Quando fui convidada para montar o instituto, tentei desestimular o Elie Horn, pois achei que a violência sexual infantil, apesar de muito dura, muito triste, era uma questão muito pontual, residual, um caso de polícia.

Eu não tinha a dimensão que hoje tenho da violência estrutural que enfrentamos em relação à violência sexual infantil. Então, digo sempre que não fui eu que escolhi esta temática, mas eu fui contratada por uma pessoa que tinha uma visão muito específica e intuitiva de que esse era um problema importante a ser enfrentado.

Qual é o contexto em que o Brasil se encontra em relação às violências sexuais contra crianças e adolescentes?

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© – Shutterstock

Este é um problema gigante no país. Vou dar um dado aqui, que é do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no Anuário Brasileiro de Segurança de 2023, que colhe a informação sobre todos os registros policiais existentes no Brasil: nós temos mais de quatro menores de 13 anos estuprados por hora no país. Isso é o que é registrado e, embora já seja um número assustador por si só, não mostra a totalidade do problema. Pesquisa encomendada pelo Liberta para o Data Folha em 2022 mostrou que cerca de 1/3 da população adulta brasileira sofreu alguma violência sexual antes dos 18 anos, mas destes, só 11% denunciaram e só 26% tiveram coragem de contar para alguém. Mesmo com essa sabida subnotificação, 61,4% de todos os estupros registrados no país são contra menores de 13 anos. Ou seja, o estupro no Brasil não é exatamente contra mulheres, mas contra meninas e crianças, inclusive meninos. 

Em relação a outros crimes sexuais, como a exploração sexual, nós também temos dados alarmantes, como a informação da Polícia Rodoviária Federal de que só nas rodovias federais temos mais de 9 mil pontos de exploração sexual de crianças e adolescentes. No entanto, diferentemente dos números que encontramos sobre estupro de crianças, em relação à exploração sexual tivemos apenas 889 registros em 2022 (este dado também é do Fórum Brasileiro de Segurança Pública). Então, estamos falando de dois crimes diferentes, ambos de violência sexual contra crianças e adolescentes, que têm números assustadores, mas um deles é mais notificado do que o outro.

Já a violência sexual virtual contra crianças e adolescentes é um desafio mais recente, que ocorre por meio das redes sociais, das interações virtuais, e que tem crescido ano a ano. Entre o primeiro trimestre de 2022 para o primeiro trimestre de 2023 houve um aumento de 84% no índice de denúncias de violência sexual virtual contra crianças e adolescentes. Precisamos conversar muito sobre essa violência e mostrar para as pessoas que o fato de o filho estar sozinho com o computador ou o celular no quarto não significa que ele esteja em segurança.

E por a diferença de registros entre o estupro de vulnerável e a exploração sexual é tão grande?

Vamos lá. O estupro de vulnerável é uma violência intrafamiliar. Mais de 70% dos estupros acontecem dentro de casa, praticadas por pessoas próximas, 44,4% pais e padrastos. Assim, apesar de termos um número altíssimo de denúncias (4 por hora), sabemos que, justamente por ser um crime que acontece dentro da família, muitas vezes ele é silenciado.

Já a exploração sexual tem uma outra característica. Ela acontece em troca de algo, pode ser dinheiro, mas pode ser qualquer objeto, pode ser um convite para uma festa, pode ser uma carona, um saco de bolacha… e as vítimas são adolescentes entre 14 e 18 anos. Ou seja, para deixar claro, menor de 14 anos é estupro, entre 14 e 18, se houver qualquer tipo de pagamento, de qualquer espécie, é exploração sexual. As penas são muito altas nos dois casos, 10 anos de cadeia para exploração sexual e 15 anos para estupro. No entanto, a gente tem um número muito maior de denúncias de estupro do que de exploração. Por que isso? Na verdade, quando a menina (ou menino) está em situação de exploração, que é popularmente conhecido como “prostituição infantil”, a sociedade tende a culpabilizar aquele adolescente e não denuncia. Pesquisa que fizemos com o Data Folha em 2018, mostrou que só 28% das pessoas que sabiam ou tinham presenciado uma situação de exploração sexual infantil denunciaram. Então, nós precisamos urgentemente repensar a relação que a sociedade tem com essa violência.

Quais os maiores desafios no combate à essas violências no Brasil?

Eu acho que o primeiro dos desafios ainda é tirar esses crimes da invisibilidade e é a isso que o Liberta se dedica: fazer o Brasil falar sobre violência sexual infantil. Se a sociedade não entender o que é essa violência, o tamanho dela e a “cara” que cada uma delas têm, não conseguiremos começar um processo efetivo e eficiente de enfrentamento. É preciso que o conhecimento e a consciência crie um grande desconforto social capaz de gerar pressão para construção e aprimoramento de leis e políticas públicas.

Como as organizações e empresas podem colaborar com a pauta?

O primeiro convite que o Liberta faz às empresas é quebrar o tabu de falar sobre essa questão. Veja, parece que falar sobre violência sexual infantil é “feio”. Eu falo aqui entre aspas, mas é um pouco sobre isso. Eu não conheço nenhuma empresa que tenha realmente se associado, associado a sua imagem, ao enfrentamento da violência sexual infantil. 

Eu fui delegada de polícia há 35 anos. Na época, a situação da violência contra a mulher era muito parecida com a violência sexual infantil. Era um tema “feio”, que as pessoas não queriam falar a respeito nem associar a sua marca. Hoje isso mudou, todas as empresas têm muitas ações, anunciam as iniciativas, investem no enfrentamento da violência doméstica e também sexual contra mulheres.

Agora veja, a característica da violência, inclusive da violência sexual contra mulheres adultas, é diferente da característica da violência sexual contra crianças. Assim, o convite que eu faço é que a gente possa conversar a respeito disso, com naturalidade, sem tabu, entendendo que feio não é falar sobre violência sexual infantil, feio é ter os números que temos hoje no nosso país, e não enfrentar corretamente, de frente, corajosamente. Vamos fazer o Brasil falar sobre violência sexual infantil, vamos engajar as pessoas, as empresas e o governo, para que todo mundo entenda qual o seu papel e ajude a proteger crianças e adolescentes dessa violência.

Onde o Liberta chegou e quais são os próximos passos da organização?

O Liberta tem sete anos de existência. Como já disse, temos uma primeira missão que é fazer o Brasil falar sobre violência sexual infantil. Temos ajudado a produzir dados, provocar a discussão e qualificar o debate. Não é só fazer a imprensa falar, as empresas falarem, mas falarem corretamente, entenderem a questão da violência estrutural, que tem raízes muito profundas, culturais. Precisamos fazer um enfrentamento sério disso. Acho que temos tido sucesso nas nossas provocações. O resultado da pesquisa que encomendamos, em 2022 para o Datafolha, para entender a dimensão da violência sexual, virou capa de edição de domingo da Folha de São Paulo. Isso não é pouca coisa. Conseguimos levar a temática para o programa do Luciano Huck, no domingo na rede globo, isso não é pouca coisa. Conseguimos despertar a preocupação da Fundação Dom Cabral que fez conosco esse curso on line gratuito. Isso não é pouca coisa. Com isso tudo vamos trazendo consciência, clareza e informação sobre essas violências.

O que pode nos contar sobre esse curso online e gratuito, que lançaram em parceria com a FDC? 

Curso do Instituto Liberta em parceria com a FDC

É um curso muito simples, com alguns episódios, todos curtos, no qual tentamos fazer um diálogo muito franco sobre todas essas temáticas, sobre estupro de vulnerável, sobre exploração sexual, sobre os crimes virtuais, como reconhecer e como prevenir. Logicamente, a denúncia é muito importante, prender o criminoso é muito importante, mas nosso objetivo não é só ser um país que prenda criminosos, a gente quer ser um país que não tenha vítimas de violência sexual infantil. E nesta lógica, de não ter vítimas, é que acho que esse curso traz muita informação.

Ele foi pensado para todas as pessoas que amam alguma criança, ou adolescente, seja um filho, uma filha, seja neto, neta, seja um sobrinho, uma sobrinha, todo mundo que convive com uma criança, para que, ao entender esta violência, ajude a preveni-la. A gente espera que as empresas realmente apoiem e divulguem entre todos os colaboradores. E isso vai do funcionário da área de limpeza até o CEO da empresa, porque também é importante dizer que esta violência está em todos os espaços, com características diferentes, mas em todos os espaços do Brasil e em todas as classes sociais. Então, é sobre isso, o convite que o Liberta faz, junto com a Fundação Dom Cabral, é para mergulharmos um pouquinho nesse tema, Cada vídeo aula têm cerca de 5 minutos, então, em 35 minutos (somando todos os vídeos) a pessoa já vai conhecer bastante sobre o assunto.  Quem quiser se aprofundar, depois pode vir para o site do Instituto Liberta e acessar os materiais que indicamos. Mas só de assistir ao curso, a pessoa estará muito mais preparada para somar nesse enfrentamento e colaborar com a prevenção da ocorrência de violência sexual contra crianças e adolescentes.




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