As equipes de transição devem ser heterogêneas e ter a confiança do candidato eleito, avalia o ministro do Tribunal de Contas, Antônio Anastasia. Ex-governador de Minas Gerais e ex-senador pelo mesmo estado, ele mapeia, nessa entrevista exclusiva ao Seja Relevante, o que seria uma transição de governo adequada. Com a experiência de ter participado de duas delas, Anastasia tem ainda o legado de servidor público, inclusive como professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

O senhor já exerceu vários cargos na administração pública, inclusive o de governador de Minas Gerais. Como esse background o ajuda em suas atividades como ministro do TCU?

Eu acho que tenho a oportunidade relativamente rara na vida, sendo estudioso de administração pública e de direito administrativo, de ter tido a chance de exercer cargos e funções para aplicação prática dos ensinamentos. Tanto no poder executivo, da qual tive uma longa carreira, culminando com o governo de Minas Gerais, como depois, no poder legislativo, tendo sido senador por Minas, e agora no Tribunal de Contas da União (TCU). E exatamente no TCU, cujo objeto precípuo de atuação é o estudo e o controle da administração pública. Então, esse conjunto — de experiências e de uma trajetória profissional longa, além do conhecimento ao qual me dediquei toda a vida no magistério — me permite de fato poder discutir, com profundidade, os assuntos com meus pares, cada qual com sua rica trajetória. É uma experiência satisfatória.

E essa experiência deixou legados…

Sim. A experiência que eu considero como o maior legado, enquanto parlamentar, é a Lei 13.655, também chamada lei de segurança jurídica. Ela dá certa estabilidade aos gestores públicos, ao determinar aos órgãos de controle que, quando for julgar os gestores, tenham a obrigação de verificar as condições nas quais as decisões ocorreram. Exatamente por ter sido gestor público, eu sei que se o gestor é premido pelas circunstâncias e acaba incorrendo em algum equívoco ou irregularidade formal, mas jamais com dolo e má fé. E isso poderá levar a uma sanção. A lei veio com esse objetivo e ela vem sendo instalada aos poucos no Brasil. Então, minha experiência me motiva a trazer essas discussões no Tribunal.

O TCU tem um papel importante na administração pública. Como o senhor avalia que o Tribunal tem construído pontes e contribuído para a gestão pública nesses últimos anos?

Nos últimos anos, o TCU alargou muito sua área de atuação. O Tribunal, que tinha uma atuação importante, mas concentrada em alguns segmentos, hoje tem atribuições legais e institucionais e participa de grandes decisões nacionais. Todo o processo brasileiro de desestatizações, da criação das agências reguladoras, todos esses temas passam necessariamente pelo TCU. Quando se fala em pontes, não são só pontes; são complexos viários, que construímos para ter o intercâmbio de informações. Nós não podemos nos considerar distantes, alheios às necessidades da sociedade. É muito importante o diálogo. Eu estou ainda recente no TCU, mas já observo que a Corte é muito aberta a esse diálogo, recebendo as partes, realizando audiências públicas, recebendo os órgãos de governo; tudo para discutir soluções. O objetivo de todos é o mesmo: o desenvolvimento nacional, com respeito à Constituição. Portanto, essa abertura é importante, já ocorre e deve ser cada vez mais aperfeiçoada.

Temos vivido, especialmente na área de infraestrutura, uma série de processos de leilões e concessões privadas, com grande impacto no setor público, ao desonerar o estado em várias áreas. Como o TCU tem contribuído para o fortalecimento desse processo?

Há exemplos recentes, como a aprovação da sétima rodada de desestatização dos aeroportos, como também a antecipação do processo da MRS, a rede ferroviária. A infraestrutura, que no Brasil historicamente é estatal, está migrando corretamente para parcerias com o setor privado. E essa migração se dá dentro do guarda-chuva do Programa de Parcerias e Investimentos (PPI), que depende do aval, por lei, do TCU. Depois da decisão política do Congresso, o tema vem ao Tribunal para uma avaliação técnica: das funções da operação, dos procedimentos que devem ser feitos, das garantias e desdobramentos. É uma análise bastante detalhada de como se dará esse procedimento, sempre com diálogo com os órgãos governamentais. Essa questão de avaliação da infraestrutura talvez seja uma das mais relevantes funções que tenhamos hoje no TCU.

Por falar em instituições, o senhor acredita que há um enfraquecimento das instituições no Brasil? E, se houver, como avalia que se pode fortalecê-las? 

As instituições no Brasil são fortes. Sempre é bom lembrar que estamos sob o regime de uma constituição nova, de 1988. Temos 34 anos de vigência dessa constituição, com as instituições revigoradas. O TCU tem mais de 100 anos, mas foi a Constituição atual que deu uma nova roupagem, uma nova missão, uma nova atribuição, assim como a outros órgãos. É um processo permanente de amadurecimento, de consolidação dessas competências, de reconhecimento de áreas. Então, é natural que tenhamos entrechoque de competências. Observamos isso, por exemplo, nos acordos de leniência, com as posições da Controladoria Geral da União (CGU), do Ministério Público e do TCU. Tudo isso vai se formando com o passar do tempo, com a “poeira baixando”, numa linguagem mais simples. Não vejo enfraquecimento, pelo contrário. Vejo um fortalecimento das instituições até pelo reconhecimento da população. É normal que o homem médio, em geral, por falta de conhecimento, tenha desconfiança. Existe, por assim dizer, um certo preconceito contra os serviços públicos e, com razão, porque muitos serviços públicos não são muito bem prestados, existe abuso, corporativismo, o que acaba levando a essas dúvidas. Sou otimista quanto a isso.

Estamos nos aproximando de uma nova eleição presidencial e estadual. E, espera-se uma fase de transição de poder. O senhor já viveu esse processo em épocas mais calmas e com uma transição conduzida entre governos que não eram oposição. O que traz de positivo dessa experiência e que poderia ser aplicada na prática nesse ano?

Tive oportunidade de trabalhar em duas grandes transições estaduais: a de 1990 para 1991 e a de 2002 para 2003. Na primeira, integrando a comissão de transição e, na segunda, coordenando a comissão. Em Minas, nós temos uma consideração importante, pois a constituição estadual de 1989 inovou e determinou que haveria uma comissão de transição. O governo federal só fez uma norma similar dez anos depois. Sempre houve esse espírito de colaboração ou tentativa entre governo que sai e que entra. A comissão é fundamental porque se baseia em duas ideias-força: a primeira é alternância de poder. O segundo fator é o da continuidade administrativa, ou seja, o novo governo que entra, mesmo que seja oposição ao anterior, não deveria destruir os programas em projetos do governo anterior que dão frutos, que têm êxitos. São esses dois valores que devem ser respeitados, considerando as características ideológicas e os compromissos eleitorais que são normais e próprios do regime democrático.

Em recente conversa na FDC — Web Café — a questão de transição foi bastante discutida. E foram levantados alguns pontos de atenção, a começar pela equipe de transição de governo. O que, na avaliação do senhor, seria uma boa equipe de transição?

Ela deve ser a mais heterogênea possível, ter pessoas de diversas origens e formações. Deve contar com servidores de carreira, com pessoas de fora da administração, com especialistas em áreas específicas e relevantes, como infraestrutura, segurança pública e saúde, por exemplo, e que possam, de fato, ter informações para o governo novo. No caso da equipe que sai, deve ser composta por pessoas que tenham acesso à informação. É fundamental ter acesso à informação e poder de disponibilizar. Para quem entra, é fundamental ter pessoas com conhecimento e tirocínio para apurar esses dados.

Considerando a estruturação de uma boa equipe de transição, que conselhos o senhor daria aos membros dessa equipe no trato com a equipe designada pelo governo que será substituído?

Quem ganha uma eleição, considerando que são de governos antagônicos, na minha opinião, não deve ter uma posição de soberba, tripudiar sobre os que estão saindo. Mesmo porque daqui a quatro anos pode ocorrer o inverso. O que se precisa é de um ambiente de urbanidade, cortesia, de muita educação e também de franqueza e confiança. Esse trato — minimamente confiável — é muito importante entre as duas equipes. O que eu recomendo é isso: urbanidade e bom senso. Não adianta também a equipe que está saindo sonegar informações, porque logo depois a nova equipe vai saber o que foi sonegado e se cria um antagonismo pior. Quando há boa fé e oportunidade de diálogo, a situação melhora sempre.

Na discussão na FDC foram destacados a questão de confiança entre as equipes. Como estabelecer esse processo e consolidá-lo na transição, principalmente nesse momento onde o calor da hora tem sido a tônica?

Nós discutimos um quadro que seria ideal, mas há casos famosos, como o do interior de Minas, quando um novo prefeito sentou-se à mesa e encontrou uma cobra viva dentro de sua gaveta. Ou seja, que transição foi essa? (risos). Infelizmente, nós temos ainda circunstâncias como essas, que demonstram imaturidade, falta de civilidade e urbanismo. A palavra-chave é confiança, porque se houver confiança a equipe que sai fornece dados que são públicos, mostrando de maneira clara qual é a situação. Ao mesmo tempo, a equipe que entra não deve usar esses dados para perseguir a equipe que sai, a não ser que haja dolo, etc. Não pode existir uma perseguição imotivada, porque teríamos uma roda permanente de perseguições.

Se houver esse quadro, o processo de transição é prejudicado?

Sim. Atrapalha, porque falta maturidade. A eleição passou, os antagonismos devem ser superados e agora temos que cuidar da administração. E ela precisa de todos, até porque quem entra precisa saber — e sempre insisto nisso — que governo pressupõe uma grande infraestrutura técnica, que não participou da eleição. A transição acalma as pessoas, mostra que o governo entrante é sério e não vai tomar atitudes tresloucadas, o que vai ser importante para estabelecer a confiança como linha condutora entre as duas equipes.

E a questão da liderança? Qual seria o perfil desejável na liderança das equipes de transição? É um perfil mais político do que técnico?

Primeiro, a liderança da comissão que entra deve ter a delegação e confiança da autoridade superior, ou seja, do eleito. O chefe do executivo tem que ter confiança e delegar ao coordenador a sua autoridade, para que essa autoridade seja capaz de levantar os dados. Segundo, o perfil pessoal deve ser o mais agregador possível. Colocar na coordenação uma pessoa belicosa, que participou da linha de frente, certamente levará a um desastre. Porque em relação à essa pessoa já existe um preconceito, antagonismo, antipatia. Quanto mais de confiança, do círculo íntimo do eleito, melhor. Mas, ao mesmo tempo que seja moderado, equilibrado, a solução vai ser acertada.

Como foi isso nas duas comissões de transição que o senhor participou?

A tradição — das vezes que participei e que deram certo — foi a liderança delegada ao coordenador do plano de governo, porque ele é uma pessoa que ficou na retaguarda, estudando a situação, apresentando ideias, planos e propostas. E, normalmente, se trata de uma pessoa ligada à administração. Se é uma transição do mesmo governo, essa pessoa é um secretário de áreas como planejamento. Um novo mandato, em caso de reeleição, o chefe do executivo pode e deve fazer modificações de estruturas. E, é claro, precisa ter conhecimento técnico. Não precisa saber tudo, mas tem que identificar outros atores que vão colaborar com ele, identificando servidores de carreira e de confiança dele para identificar programas mais relevantes para o novo governo.

Muitas vezes é destacada a diferença entre políticas de estado e políticas de governo. Como essa diferenciação pode ser aplicada na fase de transição de gestões?

Esse é um dos grandes dramas do Brasil. Nós não temos um sentimento de maturidade política para definir, de modo claro, o que é uma política de estado e uma política de governo. Sempre há o aspecto imediatista, sem o planejamento de médio ou de longo prazo. Isso leva as políticas de estado a sofrerem descontinuidade. Lembro-me, quando estava no governo de Minas, das pessoas perguntando como iríamos preservar os programas. A questão não é normativa; é cultural. Ou seja, depende de o sucessor aceitar bons programas, ainda que mude o nome das iniciativas. O conteúdo, os beneficiários, etc, não podem sofrer da falta de continuidade. Ter essa diferenciação em mente é importante, mas não há nenhum óbice que o novo governo traga suas prioridades. E sua agenda, seu planejamento. Ele não deve jogar fora o que foi feito, porque seria tolo, vai perder tempo e o trabalho realizado. Há falta de verdadeiras estruturantes de políticas de estado, que possam de fato avançar. Sem prejuízo, existem também políticas sazonais do candidato vencedor, que tem que dar satisfações ao seu eleitorado.

O senhor comentou no Web Café com a FDC: “Fica o alerta aos futuros governos que entrem em gestões em oposição aos governos atuais: não desperdicem o que já foi feito. Ainda que se mude os nomes dos programas e projetos, aquilo que foi feito não deve ser desperdiçado. Se for inteligente, a nova gestão se apropria positivamente da continuidade e segue adiante”. Como colocar isso na prática?

O grande segredo é informação. Uma equipe de transição bem azeitada, com boa liderança, autoridade moral e responsabilidade, irá garimpar as gemas mais preciosas do governo anterior, quais programas mais exitosos e, inclusive, corrigir equívocos. Essa “pesca” de pontos fortes — e mesmo o pior dos governos tem pontos fortes — deve ser estimulada. Do contrário, não vai ser inteligente, vai se sacrificar, consumindo tempo; dois anos de um mandato de quatro. Se o novo governo der continuidade, com ajustes, vai ganhar tempo e obter resultados mais rápidos. Para isso, outro segredo é ter a participação ativa de servidores de carreira, porque são eles, na prática, que fazem os programas. Uma nova administração deve acalmar os servidores de carreira, mostrar a que veio, com serenidade, e tê-los do seu lado. Eu fui servidor de carreira do estado e vejo que os servidores têm amor a esses programas. Se o novo governo estimula essas pessoas, recebe todo o acervo positivo. Se não, pode saber que o fracasso é certo, porque ele não tem tempo hábil, nos dias de hoje e com a legislação atual, para ativar programas estruturantes positivos, e vai destruir tudo, destruindo-se junto.

O senhor falou muito de servidores, então a pergunta final seria sobre reforma administrativa e como vê os pontos positivos desse processo…

O que acontece é que a reforma administrativa no Brasil é identificada como um único momento, como se fosse uma cirurgia no qual se altera a constituição. É um engano. A reforma administrativa é permanente porque a administração pública tem uma natureza dinâmica. Hoje ela tem um modelo e amanhã tem outro. Com a tecnologia avançada, a administração é desafiada a mudar. Eu defendo que a reforma deve ser permanente, o que não existe no Brasil. Nós não temos mais nenhum órgão, nem um locus institucional que seja incumbido da reforma administrativa. Desde o desaparecimento do Dasp (Departamento Administrativo do Serviço Público), em 1986, não temos um órgão que tenha a inteligência dessa reforma permanente. Segundo, quando se fala em reforma administrativa, pensa-se em redução de despesa. Ela pode até ocorrer, mas o objetivo principal é a melhoria da qualidade dos serviços públicos. Inclusive, por causa disso, ela deve ser aliada à uma qualificação e a um prestígio do servidor público. Não adianta fazer uma reforma contra o servidor público, porque ela não vai funcionar. Ele é a coluna vertebral do serviço público e deve ser aliado em qualquer reforma. Temos serviços públicos que deixam muito a desejar e temos ilhas de excelência. O que não existe é a alocação correta de recursos, razoabilidade, custo-benefício, etc. Há um mundo a se fazer e não precisamos inventar a roda.