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Impacto positivo e legados sustentáveis
Apesar de tão falado, o quiet quitting é um novelo de lã, daqueles bem embaraçados, com a ponta a ser puxada. Para começar, a tradução livre, algo como “demissão ou desistência silenciosa”, não é unânime conceitualmente. Enquanto os adeptos do quiet quitting preferem explicá-lo como “o direito de o trabalhador fazer o mínimo possível para se manter no emprego”, por exemplo, os não-adeptos o relacionam à displicência. Há também os que aceitam o movimento, mas não aderem a ele, e aqueles que não consideram o quiet quitting sequer um movimento. E são justamente essas contradições que tornam o assunto popular e intrigante, a ponto de virar meme e figurar entre os assuntos mais populares do Google e das redes sociais na atualidade.
Mas o que, de fato, pode ser o quiet quitting? E mais: quais os seus efeitos? O Seja Relevante reuniu informações para responder a pergunta, e começamos aqui convencionando que o quiet quitting está relacionado à pandemia e aos problemas de saúde mental decorrentes dela.
Contexto de saúde mental
Com a pandemia e o avanço do trabalho remoto, as rotinas de pessoas e organizações mudaram, e isso afetou a saúde mental de muita gente. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a ansiedade e a depressão aumentaram 25% em um ano de pandemia, sendo que as mulheres e os jovens foram os mais atingidos. “As informações que temos sobre o impacto da Covid-19 na saúde mental são apenas a ponta do iceberg”, disse Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS.
No Brasil, a pandemia foi somada às instabilidades econômica e política, potencializando as consequências. Os diagnósticos de depressão, por exemplo, cresceram 41% entre o período pré-pandemia (antes de março de 2020) e o primeiro trimestre deste ano, segundo pesquisa da Vital Strategies com a Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Para os quiet quitters, fazer o mínimo necessário no trabalho é uma proteção a esses males.
Em um auto-relato para a mídia de negócios Fast Company, a jornalista Camila de Lira associou o seu burnout ao quiet quitting, questionando: “por que na hora de falar sobre burnout, o assunto vira “silencioso/ quiet”? Por que falar de estratégias para evitar o esgotamento é “se demitir/ quitting”?”.
A visão do jovem engenheiro Zaid Khan, que não criou, mas propagou o termo quiet quitting com um vídeo sereno e editado no TikTok, é semelhante à de Camila: “não é sobre desistir e, sim, sobre colocar limites”, defendeu.
Khan tem 24 anos e, portanto, compõe a geração Z. Já Camila se autodeclara da geração Y. O recorte geracional confirma o que uma pesquisa realizada em parceria com a Fundação Dom Cabral já havia identificado no ano passado: a pandemia afetou mentalmente grande parcela dos profissionais, mas em especial os mais jovens.
Ouvindo mais de 570 profissionais na época, sendo que 87% deles estavam empregados, 81% dos que pertenciam à geração Z se disseram afetados mentalmente em algum grau pela pandemia.
Entre os profissionais da geração Y, um em cada três respondeu que foi bastante afetado mentalmente pela pandemia, e essa classificação – “bastante” – assustou os pesquisadores. “O que chamou a atenção na pesquisa foi que as gerações mais novas no mercado de trabalho se destacaram em comparação às gerações X e Baby Boomer”, disse João Marcio Souza, CEO da Talenses Executive a um episódio de podcast.
Great Resignation e quiet quitting
A movimentação das gerações Z e Y para uma nova era de trabalho já vinha sendo observada com o fenômeno great resignation (demissão em massa, em português). Como publicou o Seja Relevante, uma pesquisa da Workmonitor, organizada pela consultoria Randstad, identificou que os empregadores enfrentam uma pressão singular, com 70% dos trabalhadores entrevistados dizendo estarem “abertos a novas oportunidades de emprego”. Quase um terço dos jovens – 32% da geração Z e 28% da geração Y – disseram estar procurando ativamente uma mudança.
Essas gerações deixaram claro priorizar a felicidade, pois mais da metade dos pesquisados disseram que deixariam o emprego se isso os impedisse de aproveitar a vida. Para efeito de comparação, entre Baby Boomers esse índice foi de cerca de um terço dos respondentes. “Os mais jovens querem que suas convicções pessoais se alinhem com as de seus empregadores. Metade deles não aceitaria uma oportunidade que estivesse desalinhada disso”, salientou a pesquisa.
Em outra pesquisa, agora da consultoria Gallup, 54% dos trabalhadores nascidos após 1989 (geração Z) consideram que fazem o Quiet Quitting. Essa foi a faixa etária cujo quesito teve maior representatividade, e (31%) desses profissionais afirmaram ainda que não se consideram engajados com as suas empresas.
Cuidado para o rabo não comer o macaco
O professor do Executive MBA da Fundação Dom Cabral e autor do livro Decisões de Alto Impacto – Como decidir com mais consciência e segurança na carreira e nos negócios, Uranio Bonoldi, pontua que o quiet quitting surgiu com o viés de se evitar desgastes ou melhorar as relações de trabalho diante desse cenário exposto acima. Mas, como rege o ditado popular, é preciso “cuidado para que o rabo não coma o macaco”: “Entendo que esteja acontecendo um efeito contrário do proposto”, alerta.
Em outras palavras, o movimento de se fazer o mínimo possível pode significar falta de estímulo e de interesse pela inovação e pelo aprendizado. E isso, em outra via, também pode prejudicar a saúde mental, causando um efeito totalmente inverso ao proposto inicialmente.
Em reportagem do jornal Metrópoles, o psiquiatra Leonardo Rodrigues da Cruz alertou que a dinâmica do quiet quitting é mais complexa do que simplesmente colocar na pauta a melhoria da relação com o trabalho. “[é preciso perguntar] se trata-se de uma resposta passivo-agressiva dentro de um esgotamento emocional ou de maturidade para colocar limites e respeitar-se?”, disse.
Ele defendeu que a saída é impor limites e estabelecer uma boa relação com os empregadores, e que, em geral, “o equilíbrio passa pelo desenvolvimento de estratégias para lidar com as demandas de trabalho, melhorias no estilo de vida e intervenções no ambiente/instituição que gerou desgaste”.
Já Bonoldi pontua que é preciso cuidado para que esse tipo de comportamento não fira as competências comportamentais do ambiente corporativo. “O colaborador que se silencia e faz o mínimo necessário não estabelece uma boa relação empregado/empregador, ou líder/liderado. Logo, ele cria uma relação de trabalho deteriorada”, diz. “Esse tipo de comportamento também não costuma desenvolver a pessoa, não a estimula a inovar naquele ambiente. E, sem esse estímulo, ela deixa de entregar valor a si própria”, completa.
Em outra reflexão, o quiet quitter pode se tornar desonesto com o próximo, como nas cenas do filme Tempos Modernos, de Charlie Chaplin, que o trabalho desinteressado do protagonista compromete a linha fabril e termina por punir o colega, que é advertido verbalmente pelo líder. O comportamento de “fazer o mínimo necessário”, portanto, pode se transformar em “fazer menos do que deve”, criando uma relação desonesta não apenas com a corporação, mas principalmente com os colegas.
O exemplo de Chaplin também valida a afirmação de Bonoldi de que “o perfil de profissional desinteressado não é novo”. Na verdade, ele sempre existiu e, “normalmente, essa pessoa acaba não se desenvolvendo nas organizações”.
O professor esclarece a obviedade de que não se está julgando correto que as empresas exijam que seus colaboradores se desgastem em função do trabalho. Mas, para ele, o interesse e o comprometimento não deveriam antagonizar com o quiet quitting, que, nos rumos atuais, pode terminar não trazendo finais felizes para o profissional e para o empregador.
Como não ser quiet quitter
Ainda segundo Bonoldi, os trabalhadores devem olhar para si e buscar autoconhecimento, entendendo o que gostam de fazer. No fundo, o comportamento quiet quitting é resultado de uma insatisfação com aquele trabalho e ninguém quer ser insatisfeito com o que faz. “Se for o caso, esse trabalhador deve deixar a empresa e buscar outra que lhe faça sentido, ou até mesmo outra profissão que lhe dê propósito de vida. Do contrário, será sempre um profissional que não se estimulará, não perseguirá aperfeiçoamento e, consequente, crescimento na organização. Isso é ruim para ele, pois terá uma vida sem significado, assim como será danoso para a empresa, para o país e para o mundo, conclui.