As investidas sociais em busca de lucratividade, partindo do asfalto, são necessárias para o avanço dos empreendedores das favelas brasileiras. Contudo, mais importante do que créditos e aportes financeiros que elas promovem, é preciso qualificar essas pessoas para que elas tornem perenes as suas criações e mudem, de fato, a condição da base da pirâmide social do país.
É o que mostra Celso Athayde – fundador da Central Única das Favelas (Cufa), CEO da Favela Holding e idealizador da Expo Favela – nesta entrevista cedida com exclusividade ao Seja Relevante. Acompanhe.
Durante a Expo Favela 2022, você comentou sobre a necessidade de investimentos para o empreendedorismo na favela. É possível dimensionar o montante necessário e como atrair esses investimentos?
Não é possível dimensionar, pois precisamos de conhecimento mais exato de quantas pessoas empreendem, quais os tipos de empreendimentos, quantidade de informação das pessoas e seus empreendimentos, e outros dados, para que possamos entender os estágios dos negócios e imaginar de maneira mais sólida de que valores estamos falando, efetivamente.
Onde estão esses valores?
Eles podem vir de duas áreas: a primeira é de uma de área social, de fundo perdido, de filantropia e de empresas e pessoas que queiram eventualmente patrocinar, formando esses empreendedores e contribuindo para o avanço da base da pirâmide. É importante dizer que, se isso não for feito, aumentaremos a distância do país que cresceu e da favela, que ficou no mesmo lugar. O outro ponto de onde esses recursos devem vir é de empreendedores do asfalto, de investidores mesmo, que buscam o lucro a partir das apostas que estão fazendo. Essas duas frentes são fundamentais, mas, junto a elas, é preciso, sobretudo, qualificar os empreendedores da favela para que eles tenham acesso a elas.
A ascendência de fintechs, que costumam ser mais dinâmicas e flexíveis do que os bancos tradicionais, tem ajudado no acesso ao crédito para os empreendedores da favela?
Sim, há uma ajuda, mas ainda falta conhecimento das pessoas da favela sobre o que isso significa. No geral, as fintechs – assim como os grandes bancos – querem acessar os recursos que estão disponíveis nesses ambientes, mas não se preocupam em qualificar as pessoas para que elas utilizem os recursos de forma correta. Isso é fundamental quando se fala de acesso ao crédito. O crédito precisa ser acessado de forma responsável, e não simplesmente porque está disponível. O acesso é bom e importante, claro, mas ele precisa vir com um pano de fundo responsável.
O fato de 6 milhões de moradores da favela se considerarem empreendedores, segundo o Data Favela, demonstra profissionalização desse grupo ou precarização do trabalho?
Na verdade, as pessoas na favela empreendem, normalmente, por necessidade. Então, apesar da favela mobilizar R$ 180 bilhões por ano – que é um montante bem expressivo – individualmente as pessoas continuam tendo renda baixa. E o fato de ter renda baixa as levam a empreenderem. As pessoas da favela, no geral, não se classificam como empreendedoras. No fundo, elas começam a reconhecer essas expressões agora e aí relacionam que empreendem já há muito tempo. Alguém que faz escolinha de futebol na favela, peneirando jogador de futebol, por exemplo, está empreendendo ao buscar atletas na base da pirâmide. Portanto, na medida que começam a entender o que significa empreendedorismo, começam também a se reconhecer como empreendedores, e aí esse número de 6 milhões questionado vai aumentando. Hoje eu entendo que o número é esse ou bem próximo dele, mas não acho que isso signifique uma coisa ou outra [precariedade ou empreendedorismo]. Nesse sentido, eu reforço a necessidade de escolas de negócios na favela, até para que as próprias pessoas possam refletir de maneira sólida sobre o que isso significa.
Como assim?
Quando se nasce na família de um músico, começa-se desde bebê a ouvir expressões sobre notas. Se nasce na casa de um médico, também se habilita à linguagem da medicina. Então, é importante que o empreendedor da favela alcance a linguagem do asfalto, que se torne um “poliglota”. A partir daí iremos entender, de fato, o que pensam. Ou seja: esse questionamento todo terá mais sentido quando os empreendedores da favela estiverem nivelados aos do asfalto. Além disso, se as informações circularem igual na favela e no asfalto, as entregas das favelas serão muito melhores, o grau de exigência maior e, automaticamente, a gente cresce como um todo.
Você publicou um artigo na Exame no ano passado dizendo que não tinha dúvida de que a favela produziria uma empresa unicórnio. Isso já aconteceu? Há algumas empresas candidatas a isso?
Eu não quero nomear quem pode efetivamente se tornar um unicórnio, mas há alguns casos expressivos, que certamente irão se tornar unicórnio. Mas destaco que esse movimento vai acelerar a partir do momento que o asfalto prestar atenção e fizer os investimentos necessários. E não estou falando apenas de investir nas pessoas e nesses territórios. Estou dizendo que é importante qualificar essas pessoas, para que elas não “morram” no meio do caminho. No geral, os empreendedores da favela não têm informação. Muitas vezes as pessoas investem a sua aposentadoria em um negócio simplesmente porque viram que um dia alguém fez isso e deu certo. É importante que elas tenham noção efetiva do que estão fazendo, e só a qualificação faz isso, fomentando que os unicórnios venham. Eu sempre acreditei que a relação favela e asfalto é o caminho necessário para isso. O desenvolvimento, portanto, é possível, é necessário e já está acontecendo. A tecnologia está entrando nas favelas e a globalização ajuda a tornar isso cada vez mais urgente.
Você avalia que os negócios criados por moradores da favela para atender o asfalto são promissores?
Tudo que vem da favela é promissor. A favela cria muita coisa importante. Mas, normalmente, o que ela cria ela não necessariamente produz. Muitas vezes o asfalto vai para a favela, faz uma “visita de safari”, observa muitas coisas interessantes e as levam para o asfalto, apresentando como se fosse criado lá. Isso acontece porque na favela não tem networking, não tem acesso a fundos de investimentos e as coisas que as pessoas criam elas acabam não conseguindo levar adiante. Na medida que tirarmos essa cortina que está vedando os olhos das pessoas das favelas, elas perceberão o quanto criam e o quanto são capazes de produzir, obtendo o acesso às ferramentas que abrem essas cortinas. A partir daí, o país nunca mais será o mesmo, porque a favela nunca mais voltará a ser a mesma.