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Impacto positivo e legados sustentáveis
Neste dia em que comemoramos o orgulho LGBTQIAPN+ é momento de contar a história de uma comunidade diversa. Hoje há muitos relatos sobre a jornada que vivenciamos – como grupo e como indivíduos – e é importante celebrarmos essa diversidade. A lista abaixo é um recorte pessoal de livros que falam sobre o que fomos, sobre o que somos e, acima de tudo, sobre o que podemos e temos o direito de ser. Então, ao lado da sigla atual, falo de comunidade gay e ou queer. Outras tantas listas podem ser elaboradoras e compartilhadas. O importante é ter nossa voz ouvida, porque, ao ouvi-la, também estamos falando de resistência.
Stonewall – the riots that sparked the gay revolution, de David Carter
As primeiras horas da manhã do dia 28 de junho de 1969 marcaram a história gay. Para poder operar, os bares da comunidade na região sul de Manhattan – dominados pela Máfia – precisavam também pagar o “pedágio” para a polícia corrupta de Nova York. Depois de anos de perseguição e de assédio moral e violência física, gays, lésbicas e trans se revoltaram, iniciando um movimento de libertação.
O livro conta, dia após dia, como foi aquela semana histórica e nos coloca diretamente na geografia do conflito. Em 2020, numa rápida passagem pela cidade, pude percorrer os locais descritos no livro, inclusive o bar Stonewall, que foi o marco zero das manifestações e hoje é um monumento histórico reconhecido pelo governo dos Estados Unidos.
Devassos no Paraíso, de João Silvério Trevisan
Somos todos devedores do jornalista e escritor Trevisan. A obra trata da homossexualidade do Brasil desde os tempos coloniais até a atualidade. O livro mistura história, antropologia, psicanálise e tantas outras disciplinas. Vindo do interior de São Paulo, tendo ele mesmo sofrido o preconceito do pai (abordado em outro livro) e a experiência da AIDS, Trevisan foi um personagem intenso da década de 1960, inclusive com passagem pela Califórnia.
Também fez parte do grupo histórico de intelectuais que criou o Lampião da Esquina, um marco do jornalismo gay no Brasil. Com muitas referências e com um texto fluido, Devassos é obrigatório em qualquer lista.
Heróis e exílios, de Tom Ambrose
Pela singularidade de nossas vidas, o exílio é uma possibilidade real na comunidade. E é disso que trata o autor, ao contar a vida de várias celebridades (de fato). É na jornada de pessoas como a rainha Cristina da Suécia, que viveu no século XVI, e do escritor negro norte-americano James Baldwin, morto em 1987, que viajamos.
Considere o livro como um ponto de partida para conhecer figuras como as Damas de Llangollen, as lésbicas mais famosas da Europa de seu tempo, e saber mais sobre como era o mundo homossexual na pré-Guerra de 1945 ou em Tânger, no Marrocos, um dos locais escolhidos como exílio por tantos artistas e escritores.
Triângulo Rosa – Um Homossexual No Campo de Concentração Nazista, de Rudolf Brazda e Jean-Luc Schwab
Tido como o último sobrevivente gay do campo de concentração de Buchenwald, Brazda viveu o suficiente para contar sua história, escrita por Schwab. Na verdade, faleceu, aos 98 anos, pouco antes de receber a medalha da Legião de Honra francesa. Morreu com o número 7952 gravado em sua pele, a matrícula da entrada no campo de concentração.
Esperou tantos anos para ter sua história reconhecida e pouca gente sabe que os homossexuais também foram confinados pelos nazistas e sofreram duplamente ao serem discriminados por outros prisioneiros. O triângulo rosa era o símbolo colocado nas roupas dos gays, assim como existia a estrela amarela dos judeus.
The Sacred Band, de James Romm
Professor do Bard College em Nova York, Romm resgata a jornada do célebre Batalhão Sagrado de Tebas, que derrotou os praticamente “invencíveis” espartanos por volta de 379 a.C. Apesar da distância geográfica e no tempo, trata-se de um livro atualíssimo, pela mistura de história muito bem contada, com detalhes que só um intelectual criterioso como Romm é capaz de trazer.
Especialista em estudos clássicos, ele também contextualiza conceitos, ao examinar o como era a sexualidade da época – estamos falando de 150 “casais gays” de bravos guerreiros – e a própria noção do que era a Grécia de então, com suas várias cidades-estado.
Secret Historian – the life and times of Samuel Steward, professor, tattoo artist and sexual renegade, de Justin Spring
A história da comunidade LGBTQIAPN+ pode ser contada por acadêmicos como Romm ou escritores como Trevisan ou ainda por um misto de ambos, como foi Steward. Libertário, ele abandonou a carreira acadêmica em Chicago para se estabelecer como tatuador em São Francisco e manteve um detalhadíssimo arquivo com fichas sobre vários parceiros que teve ao longo da vida.
Com esse background antropológico, Steward foi, inclusive, uma espécie de consultor do famoso sexólogo Alfred Kinsey. A vida rica do artista foi uma combinação de coragem e amor à arte e à cultura.
A Talentosa Highsmith, de Joan Schenkar
Obra excepcional, essa biografia subverte a ordem cronológica tradicional e conta a vida da escritora norte-americana Patrícia Highsmith a partir do rico arquivo deixado por ela. Da mesma forma que Steward, a escritora mantinha um detalhado relato de suas amantes, com informação que municiaram a talentosa Joan a elaborar mais do que uma biografia e sim um estudo cultural, onde se sobressai, é claro, a subcultura lésbica, como também a história cultural de vários outros artistas norte-americanos no exílio na Europa.
Schenkar também é autora da biografia de Dolly Wilde, sobrinha do escritor Oscar Wilde, com a mesma maestria que manteve nesse livro.
Desejos Secretos – a história de Sidonie C., a paciente homossexual de Freud, de Ines Rieder e Diana Voigt
A origem burguesa de Sidonie não foi suficiente para livrá-la de um grande calvário na Viena do século passado. Nem a breve consulta com Freud a colocou numa linha de “normalidade” pedida pelos seus pais, judeus ricos da Áustria. Como era de se esperar, Sidonie precisou fugir da Europa nazista para sobreviver, chegando à fronteira com a China.
Como outros personagens reais dessa lista, ela nos permite conhecer o cenário da aristocracia vienense, inclusive do movimento psicanalista, e também nos fala de resistência. Para viver sua orientação sexual, Sidonie precisou fugir de vários perigos, mas não renunciou a si própria.
Testo Junkie – sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica, de Paul. B. Preciado
Nascido Beatriz, Paul é um intelectual espanhol, com formação na França e nos Estados Unidos, inclusive sendo professor de renomadas universidades nos dois continentes. Não espere dele uma postura confortável ou cômoda.
Preciado é inclassificável, um ermitão transgênero que analisa nesse Testo – com “s” de testosterona – as várias implicações de quem escolhe transicionar de gênero. Um livro de alta velocidade, mas de grande inteligência.
No armário do Vaticano – poder, hipocrisia e homossexualidade, de Fréderic Martel
Uma obra que toca na ferida bastante sensível para a Igreja Católica e, de certa forma para outras religiões. Baseado em inúmeras entrevistas – a maior parte, é claro, em off – é um mergulho em vários cenários. E Martel tem todas as ferramentas para ter feito o trabalho que fez: jornalista de primeira linha e autor de outros livros importantes, ele usou sua habilidade de repórter para tirar informação, mesmo de personagens refratários, como alguns dos mais poderosos cardeais do Vaticano.
Gay assumido, ele explica a espécie de esquizofrenia que pauta o meio religioso, onde grandes líderes homofóbicos vivem uma vida dupla de hipocrisia e poder.
Pela mão do anjo, de Dominique Fernandez
Admirador do Barroco brasileiro – sobre o qual também escreveu um livro excelente – o escritor e jornalista francês Dominique Fernandez romanceia a vida de Pier Paolo Pasoloni, grande poeta, escritor, cineasta e intelectual italiano. Assassinado cruelmente em 1975, Pasolini antecipou os conflitos da Itália industrial e é autor de uma obra cinematográfica clássica, onde revisitou, inclusive o fascismo.
O interessante desse livro – o único de não ficção dessa lista – é a talentosa forma com a qual Fernandez – também gay assumido – nos faz viajar pela vida de Pasolini e pela transformação que a Itália passou em várias décadas do século passado.
Consules de Sodoma, editado por Winston Leyland
Esses dois volumes em espanhol trazem entrevistas com 11 escritores, originalmente publicadas na revista Gay Sunshine, referência do jornalismo gay dos Estados Unidos e modelo para outras publicações mundo afora, inclusive o Lampião da Esquina, no Brasil.
As conversas com personalidades como o francês Jean Genet e o norte-americano Gore Vidal são mais uma das formas de se resgatar a história da comunidade LGBTQIAPN+ a partir do trabalho de grandes artistas. Figuras de proa como o beatnik Allen Ginsberg e o polêmico francês Roger Peyrefitte, aparecem vibrantes nos livros, detalhando como usaram sua orientação em suas obras.
Rainhas da noite – as travestis que tinham São Paulo a seus pés, de Chico Felitti
Referência atual do jornalismo digital, Felitti escreve a história das três cafetinas travestis que dominaram o submundo paulista nas décadas de 1980 e 1990. A fonte para recontar a saga do trio são entrevistas com pessoas que viveram aquela época e conheceram de perto – o que poderia ser perigoso – as famigeradas travestis.
Trata-se de um livro particularmente importante por não deixar no anonimato a história dos vencidos e as travestis, como se sabe, ocupam um espaço dos mais difíceis dentro da comunidade.
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Protocolo da Compaixão, de Hervé Guilbert
Hoje, longe do perigo que foi na década de 1990, a AIDS é quase uma desconhecida das novas gerações. A pandemia de Covid-19 proporcionou um pouco que foi que foi a AIDS para quem não conviveu com ela. Guibert, escritor francês, não conseguiu sobreviver à doença, mas teve tempo de escrever sobre sua experiência, inclusive a rotina de desesperança dos tratamentos da época. Mais do que uma doença, a AIDS foi rotulada como a “peste gay” e deu carta branca para o fortalecimento de todo tipo de preconceito.
Palimpsesto, de Gore Vidal
Terminamos essa lista com um clássico. Ao lado de Tennessee Williams e Truman Capote, Vidal formou o trio de escritores gays que pontificou a vida cultural dos Estados Unidos durante várias décadas e inspirou artistas ao redor do mundo. Foi autor do primeiro livro abertamente gay – entre escritores respeitados – na década de 1950.
Pagou o preço pela ousadia, tendo sido ignorado por décadas pelo prestigioso New York Times. Refinado ensaísta, Vidal escreveu dois livros de memórias, sendo esse o primeiro. Mais do que seus livros, ele foi como Pasolini, abertamente gay numa época em que isso era um crime imperdoável. Ao ler suas memórias, o que sentimos não é respeito pela coragem que demonstrou ao longo da vida, mas admiração por ele ter vivido a sua verdade.
* Nelson Valêncio é jornalista formado pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP.