A maneira como a sociedade moderna se comporta, pautada em produção, resultados e desenvolvimento contínuo – somada à incapacidade de criar outro sistema – é o que explica a ansiedade e angústia contemporânea. A visão é do filósofo e escritor Luiz Felipe Pondé, para o qual a liderança de órgãos governamentais e empresas relevantes deveriam servir como um guia para a comunidade, nesse contexto.

Em entrevista ao Seja Relevante, realizada na ocasião em que palestrou para os programas de mestrado e doutorado da Fundação Dom Cabral, Pondé falou sobre as oportunidades que a tecnologia traz ao ambiente corporativo, assim como os sintomas da sociedade e os desafios da liderança. Para ele, “uma boa liderança é entender que, em grande medida, a obrigação de ter lucro e bater meta adoece muita gente”. 

Como você vê o papel da filosofia na formação da liderança moderna?

A filosofia floresceu em Atenas quando ela estava em decadência. Ou seja, quando havia muita confusão. Quando o mundo se incendeia, o filósofo nada de braçada. A modernidade é uma condição de crise contínua, porque cresce demais a pressão, a lógica da produção, a sensação de objetificação. Mesmo que falem o contrário, continua sendo assim. Então, a filosofia pode ajudar na formação de líderes, trazendo repertório e ideias originais. A boa filosofia, para usar uma expressão do mundo corporativo, está sempre fora da caixa, está sempre pensando de um jeito que, normalmente, não se pensa: fora do senso comum. E isso implica em capacidade de mais criatividade, de olhar as questões por vários ângulos e de não ser óbvio, que é o grande pecado do mundo contemporâneo.

Vivemos uma época dinâmica e cheia de questões delicadas. Você vê as organizações preparadas para conduzir a sociedade em busca de um futuro melhor?

Preparadas, acho que não estão. Há um chamado para que as empresas ocupem uma função republicana, porque, de forma geral, o Estado não consegue dar conta de uma sociedade tão gigantesca, com tanta gente, tão contenciosa e desigual em todos os níveis. No passado, as empresas foram muitas vezes chamadas a exercer funções de caridade. Hoje, elas são chamadas a assumir parte da responsabilidade num processo de melhor socialização entre as pessoas, começando pelo ambiente de trabalho. Então, não acho que as empresas estão plenamente preparadas para isso, mas muitas estão mais prontas do que outras. 

Nesse sentido, qual é o maior desafio para as organizações?

luiz felipe ponde
Foto: FDC

Eu tenho a impressão de que, principalmente no Brasil, que tem um estado disfuncional, precisa-se muito de outros órgãos que atuem como corpos intermediários, como se chama na sociologia. E as empresas são corpos intermediários importantes. Um desafio que elas têm é o de não deixar que essa atuação seja apenas marketing vazio, que é o mais fácil e comum. Alguns posicionamentos pegam muito bem como branding, mas existem empresas que têm um super branding de envolvimento com causas e, no entanto, a gestão de pessoas internamente é terrível. Então, acho que esse é um desafio maior do que a capacidade de colocar ações em prática. Porque a empresa é, essencialmente, uma unidade de realizar coisas e, portanto, colocar ações positivas em prática não é tão impossível para a empresa. Agora, o desafio é ir além e escapar da armadilha de fazer isso só como marketing.

Você frequentemente fala sobre a angústia e a ansiedade na sociedade contemporânea. Qual é a raiz disso?

Eu diria que vivemos uma ansiedade de causa social. Quer dizer, ela emana da própria estrutura como a sociedade moderna se organiza. Ela se organiza ao redor da ideia de que os sujeitos devem ser suficientes, autônomos e capazes. As pessoas têm de estar em processo contínuo de melhoramento, de aperfeiçoamento. E isso é ansiogênico. As pessoas precisam dar conta de várias frentes na vida: você tem de ter carreira, tem de bater meta, tem de ser saudável, tem de ter ideias legais, tem de ser uma pessoa legal… Isso tudo é ansiogênico. A modernidade é ansiogênica por si e não vai melhorar, não vai passar.

Por quê?

Porque essa ansiedade é gerada pela própria estrutura de como a sociedade produz eficácia, objetividade e resultado. E essa estrutura não vai mudar. Então, as pessoas buscam o que podem: yoga, remédio, tratamento, alimentação. E isso, muitas vezes, gera ansiedade ao querer combater a própria ansiedade.

Como você vê essa ansiedade se manifestar nos ambientes corporativos?

angústia e a ansiedade na sociedade contemporânea luiz felipe ponde

No mundo do trabalho, os primeiros sintomas são os casos de adoecimento psíquico. Há algum tempo atrás, estava na moda falar burnout. Como tudo que é moda, a palavra caiu em desuso, mas o fato é que o problema existe, independente da moda da expressão. Você perde a capacidade de resolução de problemas, perde o gosto pelo trabalho. E nem sempre a liderança sabe lidar com o fato de que a cobrança sobre as pessoas chega a um nível de adoecimento.

Normalmente, as empresas passam a falar que os funcionários são super amados, passam a chamá-los de colaboradores, fazem festas e inventam métodos para fazer aquela coisa que se chama hoje em dia de diversity washing. E fazem isso porque pega bem.

Há algum caminho de solução dentro das organizações? As lideranças podem atuar?

Acredito que o desafio de uma boa liderança é entender que, em grande medida, a obrigação de ter lucro e bater meta adoece muita gente. Mas eu não acho que eles vão entender isso, porque a estrutura de competição contínua e de crescimento de demandas é sempre maior. O resultado é que, no final, as empresas criam um departamento de psicologia para dar conta das pessoas. Há alguns anos, estava na moda as empresas criarem salas de relaxamento. Não era relaxamento, era descompressão. Você chutava almofada, botava som de água caindo, canto de passarinho para as pessoas irem lá e descomprimir durante um tempo. E não duvido que, se tiver num pico muito alto de ansiedade, de repente isso funcione. Mas é paliativo.

Então as empresas são responsáveis importantes nesse cenário?

Se vamos falar de culpa, acredito que a culpa não é das empresas ou das lideranças. As empresas estão inseridas em uma rede de competição violentíssima. Não é uma questão de culpa, mas a primeira causa disso é o sistema de produção que a gente vive, que ninguém conseguiu criar outro melhor e que nenhum outro produziu tanta riqueza. Produzir riqueza é competição e competição estressa.

Falando um pouco sobre tecnologia, ela tem transformado drasticamente a forma de comunicar e interagir, inclusive no ambiente de trabalho. Como você vê isso?

A gente não pode abrir mão da tecnologia. Eu não sou apocalíptico, como alguns que acham que a tecnologia destroi a vida. Nesse sentido, sou mais integrado. Eu acho que a tecnologia trouxe muitos ganhos. Creio que o impacto positivo é semelhante, mas em um grau maior: veja o que o Waze causou na nossa vida. Temos mais informação para tomar melhores decisões, temos o esclarecimento de processos, temos velocidade no acesso a todo tipo de coisa e temos a realização de funções em que os seres humanos são menos capazes, inclusive em termos de realizá-las naquele tempo específico.

A tecnologia faz com que as pessoas consigam trabalhar à distância, mesmo depois da pandemia, o que se revelou um ganho, inclusive em termos de custos para as empresas.

Então, você não vê como negar o avanço tecnológico?

A tecnologia da informação dentro do mundo do trabalho só vem a somar, como normalmente a tecnologia faz. A Revolução Industrial, por exemplo, aumentou a capacidade de produção de bens e acabou criando uma série de profissões e de trabalho. A eletricidade tornou possível uma série de processos inimagináveis e, hoje, a gente é completamente dependente dela.

No começo do Século XX, existia um grupo chamado de Luditas, que era o movimento de pessoas que achavam que a humanidade deveria voltar 100 anos e abandonar a técnica, abandonar a Revolução Industrial, abandonar a luz elétrica. Hoje em dia ainda tem um ou outro por aí, mas normalmente é algum rico que quer brincar em uma praia deserta.

E os revezes?

É claro que a tecnologia também trouxe problemas: aviões podem jogar bombas e a aceleração da vida faz com que você possa ficar ansioso, por exemplo. E a tecnologia mais agressiva no sentido de resultados, como é a inteligência artificial, pode eliminar certas funções que eram realizadas. Mas ela pode criar outras também, como sempre foi a relação com a tecnologia: ela elimina determinadas áreas e cria outras áreas.

A questão em países como o Brasil é a educação, porque talvez não exista mão de obra para lidar com essas áreas no momento que isso se tornar necessário. Acho que, em alguns anos, quando a inteligência artificial estiver adaptada à nossa vida, vai ser como foi o Waze. A gente vai usar e nem vai se lembrar disso.