Em Mad Max (2001), Planeta dos Macacos ou na literatura cyberpunk, angústias contemporâneas são levadas ao extremo, menos como predição do que advertência. A teoria econômica também tem esse tipo de modelagem de cenários. Uma dessas distopias foi formulada por Yanis Varoufakis, economista e ex-ministro das Finanças da Grécia, principal defensor do conceito de tecnofeudalismo, um sistema em que a dominância dos oligopólios digitais (como Google, Amazon e Meta) torna a concentração de recursos e o papel dos agentes econômicos inexoráveis, assim como a condição de suserano, servo ou artesão.
Para o professor Paulo Vicente Alves, da área de Estratégia de Gestão Pública da FDC, a própria analogia aponta suas contradições. Segundo ele, o feudalismo histórico colapsou conforme os profissionais urbanos, sem domínio territorial ou título de nobreza, foram da periferia ao centro da ordem econômica.
“Os mercados são dinâmicos. Há empresas inaugurais; entram concorrentes se diferenciando em pontos específicos; formam-se oligopólios com fusões e aquisições; e surgem outros agentes atuando nas bordas desse mercado”, descreve. “Quando se olha dinâmica do mercado, é difícil se ter feudos. Sempre vai ter alguém que acha que pode fazer melhor. E faz. A estrutura de cloud e telecom baixa as barreiras e entrarão novos jogadores.”, acrescenta.
Além do fortalecimento de agentes econômicos “não incumbentes”, outro paralelo histórico é que o poder discricionário dos senhores feudais se esvazia à medida que os estados nacionais padronizaram moedas, regras de tráfego e contratos. “Os feudos são quebrados por entrantes ou por regulação. Padronização e escala derrubam barreiras”, resume o professor.
Ciclos e superações
Em entrevista exclusiva ao podcast da FDC, o professor lembra de precedentes históricos, passados e contemporâneos, de ciclos de rupturas, desequilíbrios, estabilização e mudanças de paradigmas. Ele menciona que no início da Revolução Industrial, os empresários teriam que ter capital para verticalizar a produção ou ficavam amarrados aos fornecedores de máquinas. “Depois se padronizaram parafusos e conectores. Mais recentemente, até a década passada, os padrões de teclado de celular também não eram intercambiáveis”, exemplifica.
No caso das patentes de medicamentos, o ciclo entre a exploração da exclusividade e a competição em mercado aberto (de genéricos) é explícito. “É claro que qualquer empresa tenta maximizar o tempo dos ganhos por ter uma oferta única, mas sabendo que isso é finito”, esclarece Paulo Vicente.
Outra contrapartida à hegemonia é que companhias comprometidas com mercado de grandes volumes acabam deixando lacunas nos nichos. “Quando a Ford abriu o mercado com a oferta do Ford T ‘para todos’, a GM lançou modelos para uso específico (carga, uso urbano etc.). Com isso, ganhou mercado, e hoje todas as montadoras têm portfólio com produtos para nicho”, ilustra o professor, citando também outros produtos: “com cerveja, a consolidação de uma gigante com muitas marcas em muitos mercados abriu espaço para centenas de produtores artesanais. Há três marcas que pegam o núcleo do mercado, mas tem mais gente jogando”.
Essa “árvore de evolução”, em que um grande modelo ancestral se ramifica nos mercados que se inauguram, é um fato para as megacorporações e deve ser um objetivo quando se trata de investimentos públicos. “O Estado pode ter que entrar em algo importante, com pouca viabilidade de retorno. Depois que estabelece os fundamentos para se desenvolver um mercado, sai”, descreve. “A lógica é ter o Estado como empreendedor em um momento, e depois como regulador. Mas nas questões que envolvem poder, sempre haverá disputa”.
Diferente das fases anteriores da Revolução Industrial, as nuvens e outros modelos as a service democratizam o acesso a bens de capital digitais. “Há casos em que as barreiras de entrada são muito altas, mas na maioria dos setores a tecnologia as derruba com o tempo. O celular quebrou feudos do varejo e de bancos, que dependiam de pontos físicos. Agora, o jogo do bicho foi desmaterializado por bets e jogo do tigrinho”, ironiza.
Entre as predições que arrisca, o professor aponta a tendência de a IA se consolidar como “serviço universal” (como energia e Internet). “A IA precisa de escala. Começa por grandes empresas e depois haverá provedores atendendo ao mercado”, vislumbra.