Nem sempre é fácil realizar a transição da atuação plena, regular e diária no mercado de trabalho para a aposentadoria, especialmente quando o profissional acumula farto capital cultural, social e econômico, como acontece com sócios de grandes empresas. O tema foi explorado no artigo ‘Unbecoming’ a Professional: The Role of Memory during Field Transitions in Japan and the USA, de autoria de Ricardo Azambuja, Lisa Baudot, Saori Matsubara, Takahiro Endo e Dana Wallace, publicado no Journal of Management Studies.

Para investigar o que acontece nessa transição e produzir o artigo, o grupo de acadêmicos mergulhou nessa realidade e entrevistou 48 sócios aposentados (26 no Japão e 22 nos EUA) das chamadas Big 4 – as quatro maiores empresas de auditoria e consultoria do mundo: Ernst & Young (EY), Deloitte, PricewaterhouseCoopers (PwC) e KPMG. O resultado é que japoneses e americanos encaram esse processo de maneira bem distinta, mas ambos carregam na chamada memória profissional uma bagagem importante, um patrimônio que proporciona alicerces emocionais de peso para sua nova realidade. O estudo sustenta ainda a relevância de as empresas passarem a incorporar apoio social e psicológico ao futuro aposentado.

No artigo “Deixando de ser um profissional: o papel da memória durante as transições de campo no Japão e nos EUA”, publicado no Journal of Management Studies, os autores do estudo explicam como tanto os profissionais japoneses, quanto os dos EUA sofrem uma experiência de “histerese”, que poderia ser traduzida como ruptura, um desalinhamento entre o capital acumulado por eles e as novas circunstâncias. Os autores abordam como esse efeito é influenciado pela “nostalgia” sentida pelos profissionais e pelos arranjos específicos de cada país. Em resumo, o estudo destaca que, embora contextos culturais e sociais influenciem a maneira como ex-sócios vivenciam essa transição, nostalgia e memórias de seu passado profissional desempenham um papel significativo em como eles se adaptam.

Diferença entre as culturas

Apesar de ambas envolverem e histerese, o estudo mostra que a forma de encarar a aposentadoria é bem diferente entre as duas culturas. Ex-sócios japoneses geralmente veem a aposentadoria como uma “graduação” ou “sotsugyou”, uma transição para uma nova fase em vez de um fim completo de suas vidas profissionais. Muitos ex-sócios japoneses continuam a trabalhar em cargos de Conselho de Administração e mantêm suas credenciais profissionais, alavancando seus conhecimentos, habilidades e rede social anteriores. Isso reflete o conceito cultural de “ikigai”, ou ter um propósito na vida, que geralmente inclui trabalho contínuo e um compromisso de contribuir para a sociedade.

Ainda no Japão, com relação ao capital social, relacionamentos profissionais fortes e lealdade aos ex-colegas persistem na aposentadoria para ex-sócios. Eles continuam a se envolver com sua rede profissional, o que os ajuda a garantir posições pós-aposentadoria e a manter um senso de pertencimento. O estudo destaca que esse trabalho contínuo se alinha com as expectativas sociais e estruturas familiares japonesas que enfatizam a contribuição contínua para a casa como parte do propósito individual.

Em contraste, ex-sócios dos EUA tendem a encarar a aposentadoria como um momento para se desligar completamente da vida profissional e dedicar-se a outras esferas da vida. Para muitos, a aposentadoria é vista como uma recompensa por décadas de trabalho duro, alinhando-se ao chamado “Sonho Americano”. Em relação ao capital econômico, ex-sócios dos EUA redirecionam seu foco para lazer, família e interesses pessoais. Para eles, a aposentadoria tem menos a ver com manter vínculos com seu passado profissional e mais com alcançar uma vida de conforto e prazer. Com relação ao capital social, os relacionamentos profissionais geralmente diminuem após a aposentadoria para ex-sócios dos EUA. Eles enfrentam o desafio de construir novas redes sociais fora do trabalho.

Fatores psicológicos

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O estudo sustenta que uma boa transição de carreira para a aposentadoria vai muito além de as empresas proporcionarem boas remunerações aos executivos nesta nova fase de sua vida. Muitos dos programas tendem a se concentrar apenas em considerações financeiras. O trabalho dos professores fornece insights sobre como a nostalgia e os valores culturais influenciam as transições de campo e de vida, enfatizando o impacto duradouro da história profissional. Portanto, entender essas dinâmicas pode ajudar as organizações e a sociedade a apoiar melhor os profissionais em suas transições para a aposentadoria, considerando fatores psicológicos e culturais.

“Dado que muitas vezes os profissionais contam com as firmas, a carreira e o trabalho como sistemas de apoio abrangente, não apenas para cumprir ambições financeiras e profissionais, mas também necessidades sociais e psicológicas, nossa análise aponta para outros aspectos da aposentadoria que também devem ser levados em consideração, como incorporar apoio social e psicológico e reconhecer a importância de arranjos profissionais e sociais do contexto do aposentado”, sustenta o estudo.

Cenários desafiadores

A importância da bagagem profissional, da memória, da nostalgia e outros aspectos psicológicos é traduzida de várias formas no contexto pós-aposentadoria. Por exemplo, os ex-sócios japoneses podem descobrir que, embora suas habilidades e títulos tenham valor social, esse valor nem sempre se reflete em suas novas funções nos Conselhos de Administração. Esse desalinhamento pode criar uma “sensação de desorientação”, pois eles se esforçam para redirecionar sua experiência a fim de se adequar a novas responsabilidades. Já os ex-sócios dos EUA vivenciam a histerese como uma desconexão repentina das redes profissionais e ambientes estruturados nos quais estavam profundamente inseridos. Eles podem, por exemplo, achar desafiador construir novos círculos sociais fora do trabalho. Como se vê, a transição de carreira para a aposentadoria envolve um quadro de desafios nas duas culturas.

O estudo foi conduzido pelos professores Ricardo Azambuja, Lisa Baudot, Saori Matsubara, Takahiro Endo e Dana Wallace.